Carolina Bianchi e Mawusi Tulani em cena.
A segunda noite da 48ª edição do Festival de Cinema de Gramado, que este ano acontece em formato multi plataforma e com exibição no Canal Brasil, começou com os curtas Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho, e Subsolo, de Erica Maradona e Otto Guerra. O longa estrangeiro deste sábado, 19/09, foi o colombiano La Frontera, de David David.
Dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra, Todos os Mortos, que disputou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, foi exibido na mostra competitiva de longas brasileiros. No filme, ambientado em São Paulo entre 1899 e 1900, duas famílias, uma branca, os Soares, e outra negra, os Nascimento, guiam a trama, que se passa onze anos após o fim do período escravista; passado recente que ainda mantém os decadentes Soares presos à ideia de superioridade e posse. O elenco conta com Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thaia Perez, Agyei Augusto, Alaíde Costa, Leonor Silveira, Thomás Aquino, Rogério Brito, Andrea Marquee, Gilda Nomacce e Tuna Dwek.
Na manhã seguinte à exibição, integrantes da equipe participaram de um debate virtual comandado por Roger Lerina. Marcaram presença: Caetano Gotardo, um dos diretores; as atrizes Mawusi Tulani e Thaia Perez; e o compositor da trilha original e consultor de roteiro, Salloma Salomão.
Em sua apresentação, Gotardo falou sobre o problema que ocorreu na exibição do longa na noite anterior: “Infelizmente, ontem aconteceu um grave problema técnico na transmissão do filme. Eu acho importante deixar isso claro pra quem assistiu pela primeira vez nessa transmissão. Teve algum erro na compreensão do som para a TV. O som do filme não é como foi exibido. Muitas vezes os diálogos foram sobrepostos completamente pelos outros sons, pela música. O filme tem um trabalho de som muito delicado e tem uma narrativa sonora e musical importante. Mas, a maneira como ele foi exibido ontem não reflete o trabalho de som do filme. E isso prejudicou bastante a relação de algumas pessoas com o filme, pelo que a gente viu por meio de vários depoimentos. Além disso, os créditos finais foram acelerados. Não nos consultaram sobre isso, que também acho um profundo desrespeito com toda a equipe. Foi a primeira exibição do filme no Brasil e os créditos passaram em uma velocidade maior que o dobro. Existe uma canção nos créditos finais, composta pelo Salloma Salomão, que não tocou nem a metade. Foi impossível ler os nomes das pessoas que realizaram esse filme”.
Depois disso, Caetano contou sobre o início da ideia de Todos os Mortos: “O filme começou com uma ideia do Marco Dutra, que dirige e escreve comigo. Ele teve uma primeira ideia a partir de uma pesquisa que estava fazendo para outro projeto. Na nossa primeira conversa já ficou claro o que nos interessava em pensar nesse período histórico brasileiro: era no quanto víamos uma relação profunda entre aquele período e o período que estamos vivendo”.
Debate virtual no Palácio dos Festivais em tempos de pandemia.
Mawusi Tulani, que interpreta Iná Nascimento, falou sobre seu papel: “O que mais me encantou na minha personagem foi que realmente, até então pra mim, artista preta, nunca tinha sido apresentada a um personagem de época. Uma personagem que não passa só ao fundo. É uma personagem que tem algo a dizer, que traz sua subjetividade enquanto mulher preta. É uma mulher que quer mudar de vida. Conseguimos, de alguma maneira, introduzir no filme dados importantes da história da luta do povo preto. É extremamente gratificante fazer parte desse ponto de virada. A Iná traz uma nova experiência para dentro do cinema”.
O compositor Salloma Salomão fez um discurso importante e necessário durante a coletiva: “Tenho sido crítico dos filmes produzidos por uma elite branca brasileira, que sempre nos coloca, e também os indígenas, como materiais de estudo e exploração econômica e estética. Mas, raramente, os artistas da elite branca entram em contato direto conosco no corpo a corpo. Os filmes rendem prêmios, rendem visibilidade artística e intelectual, mas eles produzem uma leitura completamente distorcida da nossa presença política, econômica e, principalmente, cultural na formação do Brasil”.
E continuou, falando também de Todos os Mortos: “No meu entendimento, qual é a importância do filme do Caetano e do Marco? Eles produzem uma virada nessa produção de estereotipia, nessa máquina de deterioração da nossa construção, da nossa imagem. Ele desliga a chave da violência para conectarmos com experiências históricas, como os quatrocentos anos de dominação violenta do escravismo e da produção capitalista reacionária para uma alteração nessa historicidade. Ou seja, Caetano e Marco abrem uma janela temporal que nos permite ver os dez anos; ou entender esses anos de república que desaguam nessa coisa terrível, que atualmente é esse autoritarismo de barbárie que estamos vivendo. Nós tivemos autoritarismo o tempo inteiro, mas não nesse nível, que inclusive está atingindo a própria elite intelectual e artística branca. Caetano e Marco trazem uma nova sensibilidade. O filme é corajoso porque interpreta esse tempo de construção da modernidade reacionária brasileira a partir de São Paulo”.
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Fotos: Hélène Louvart, Dezenove Som e Imagens/Edison Vara, Agência Pressphoto.