Welket Bungué: protagonista em cena.
Exibido na Competição do Festival de Berlim deste ano, Berlin Alexanderplatz, de Burhan Qurbani, é baseado no romance homônimo escrito por Alfred Döblin. O longa, que disputou o Urso de Ouro, foi premiado no German Film Awards em cinco categorias, no Festival de Roterdã e também no Stockholm Film Festival.
Destaque da Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a trama se passa quando Francis, interpretado por Welket Bungué, é resgatado no litoral do sul da Europa e faz um juramento a Deus: de agora em diante, será um novo homem; um homem melhor e decente. Agora, Francis está em Berlim, onde se dá conta de como é difícil ser justo quando você é um refugiado ilegal na Alemanha; sem papéis, sem uma nação e sem autorização para trabalhar.
Ele, então, recebe uma oferta de trabalho de Reinhold, papel de Albrecht Schuch, um carismático alemão, com a promessa de conseguir dinheiro fácil. Francis, inicialmente, resiste à tentação, mantém seu juramento e se afasta dos negócios obscuros de Reinhold. Mas, eventualmente, ele se vê imerso no submundo de Berlim e sua vida fica totalmente fora de controle.
Para falar mais sobre o filme, conversamos por e-mail com o protagonista Welket Bungué, que foi premiado por sua atuação no Stockholm Film Festival. Nascido em Guiné-Bissau, também atuou em diversas produções brasileiras. Confira:
Berlin Alexanderplatz é baseado no romance homônimo de Alfred Döblin. A história já tinha sido adaptada para os cinemas, em 1931, por Phil Jutzi e também por Rainer Werner Fassbinder, na década de 1980, para uma série televisiva. Você já conhecia essas outras versões? Se não conhecia, chegou a ir atrás para buscar alguma referência? Como foi o seu trabalho de construção do personagem Francis?
Na verdade, eu somente ouvi falar do romance depois que fui contactado pela produtora alemã Sommerhaus, em abril de 2017. Depois disso, envolvi-me mais com o conceito criativo do Burhan para esta nova adaptação do romance do Alfred Döblin. Para encarnar o personagem assisti bastante filmes e, sobretudo, me conscientizei profundamente sobre as dinâmicas político-sociais que me influenciaram durante as minhas idas ao Brasil, e para outros quadrantes internacionais. Na verdade, sendo eu um artista internacionalizado, já tinha vivenciado algumas situações semelhantes às vividas pelo meu personagem no filme. E refiro-me a situações de injustiça social, ou mesmo de descriminação por preconceitos vários. Lembro-me de ler James Baldwin e de ver o filme Beasts of No Nation, e isso fortaleceu muito o meu imaginário do background do Franz B. Mas, este filme foi especialmente desafiador porque falo alemão em mais de 65% da trama, e até então eu não tinha nenhuma familiaridade nem com a língua nem cultura alemãs. Por isso, precisei de aprender alemão durante cerca de cinco meses.
Welket Bungué e Albrecht Schuch em cena.
Como você chegou nesse projeto? E como foi o entrosamento com o elenco e com o diretor no set?
Esse projeto chegou até mim em 2017, em abril, logo após regressar ao Rio de Janeiro vindo do Festival de Berlim onde estivemos em competição com o filme Joaquim, de Marcelo Gomes. Recebi um e-mail maioritariamente escrito em alemão e em inglês, e de início até desconfiei que fosse spam. Depois disso, confirmou-se que era coisa séria, mas precisei fazer uma self tape para me apresentar para o diretor e para a produção. Depois, em outubro de 2017, sensivelmente, pude conhecer o diretor no contexto de casting ao vivo, onde igualmente conheci meus colegas Jella e Albrect. Penso que nesse momento, a química entre esse grupo triádico foi consensual e o diretor e o fotógrafo Yoshi perceberam que o filme começava a ganhar corpo e rostos vivos. Posteriormente, nos reunimos cada vez mais para discutir a origem do Francis, que acabou por ser assumidamente da Guiné-Bissau e não mais da Nigéria. O filme foi rodado entre maio e julho de 2018 na Alemanha e depois ainda filmei as cenas passadas em solo africano na África do Sul (Cape Town), em dezembro de 2018. A uma fusão de cumplicidade e de afeto ao longo do filme, que foi abençoada com a humanidade do nosso diretor Burhan Qurbani, e, claro, com a equipe que ele tem trabalhado desde o seu primeiro longa-metragem. Em especial, a minha performance no papel de Francis é muito iluminada pela parceria forte e constante do Albrecht Schuch, que interpreta Reinhold.
Berlin Alexanderplatz participou da Competição Oficial do Festival de Berlim deste ano e disputou o Urso de Ouro. Depois disso, foi premiado no German Film Awards. Pra você, como protagonista, qual a importância dessas participações em festivais e como isso afeta sua carreira?
O filme teve um lançamento até bastante gracioso tendo em conta que estamos a viver um ano atípico. Depois da Berlinale, tivemos 11 nomeações técnicas e artísticas no German Film Awards, das quais fomos premiados em cinco categorias. Foram momentos de grande emoção e que eu considero de grande prestígio para todos os envolvidos. Percebemos que o filme tem qualidade e que o júri viu com dedicação. Atribui-nos uma grande responsabilidade perante aquele que veio a ser o entendimento e comunicação do filme perante o público alemão dali em diante. Eu, sendo um cidadão natural da Guiné-Bissau, crescido e formado em Portugal, e agora a circular por todo o mundo, ver-me nomeado naquilo que é, à falta de melhor termo, a primeira liga de atores e atrizes alemães, é um grande marco para a minha trajetória artística. Mas, também do ponto de vista da minha autoestima, dos meus objetivos pessoais e de como se configura a paisagem humana no que toca à representatividade na indústria do cinema europeu. A Academia Alemã veio dar-me um selo de qualidade que poderá ser observado por um público internacional e isso deixa-me bastante feliz e curioso para ver o que se seguirá no futuro.
Dupla em cena: Welket Bungué e Jella Haase.
Você recentemente ganhou uma sessão especial na Mostra CineBH com a exibição de alguns de seus trabalhos. Ao mesmo tempo, participava da Mostra de São Paulo com Berlin Alexanderplatz. Estes eventos ganharam uma abrangência ainda maior este ano por conta do formato on-line. Como foi a repercussão disso tudo para você? E qual a sua relação com o Brasil, visto que já participou de algumas produções nacionais como Corpo Elétrico e Joaquim?
As repercussões a esse respeito têm sido bastante generosas. Tenho conseguido alcançar um público mais amplo e verdadeiramente interessado nos conteúdos e temáticas abordadas na minha filmografia. E isso não tem preço! É um tipo de dinâmica que, para um artista independente, ainda não representado por nenhum produtor ou galeria de arte, é praticamente incansável em tão pouco tempo. É claro que o mediatismo associado ao meu trabalho como ator internacionalizado ajuda a alcançar uma maior amplitude de público, mas isso é um trabalho muito árduo. No entanto, sinto que com o formato on-line e pelas pessoas estarem mais sequiosas de consumir conteúdos com substância e profundidade, que isso ajudou-me a encontrar um nicho de pessoas ou de entusiastas que entendem e discutem mais os filmes que tenho produzido até aqui. Aparentemente sentimo-nos todos “periferizados” e as linguagens do meu “cinema de autorrepresentação” conseguem agora tocar mais as pessoas, porque há uma diluição de contextualizações sociopolíticas que acabam por de alguma maneira igualar-nos no sentido humano do termo. No entanto, a minha relação com o Brasil e o seu cinema ainda tem muito para dar. Isto é, aguardo a estreia do filme A Travessia de Pedro, de Laís Bodanzky, e A Matéria Noturna, de Bernard Lessa. Tomara que em 2021 possamos estar numa grandiosa estreia com um desses filmes!
Fotos: Divulgação.