Em vez de romantizada, a maternidade humanizada.
Dirigido por Dainara Toffoli e protagonizado por Monica Iozzi, Mar de Dentro é um dos destaques da Mostra Brasil da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e segue disponível na plataforma Mostra Play até quarta-feira, 04/11.
O longa, que está entre os finalistas ao Troféu Bandeira Paulista, sendo um dos mais votados pelo público, reflete, por meio da história particular da protagonista, as dúvidas e inquietações que rondam muitas mulheres ao redor do mundo a respeito da maternidade.
O filme fez sua première mundial em junho no festival Cine Las Americas. A estreia nacional aconteceu na Mostra de São Paulo pela plataforma do evento e também será exibido em uma sessão especial no Belas Artes Drive-in no dia 03/11, terça-feira.
A trama acompanha a trajetória de Manuela, uma profissional liberal, que vive em uma grande cidade, tem uma carreira estabelecida e uma vida amorosa livre. Mas, quando engravida de um colega de trabalho, encara uma mudança de vida cujo impacto não é capaz de controlar. As transformações em seu dia a dia vão desde as perdas em relação ao cargo que ocupa no trabalho, as questões emocionais, as transfigurações e oscilações em seu corpo e até mesmo uma inesperada solidão. Enquanto lida com tantos desafios, ela se defronta com uma fatalidade que afeta ainda mais seu destino. Entre tantas transformações, Manuela, afinal, quer aprender a ser e a se descobrir mãe, mesmo sem, a priori, gostar da maternidade.
Assim, o filme propõe que o espectador mergulhe e tenha uma vivência na experiência única daquela mulher. Uma mulher que, sufocada pela rotina extenuante do bebê, acha que tem que cuidar de tudo sozinha. E quando precisa voltar a trabalhar, terceiriza os cuidados de Joaquim para outras mulheres, que também terceirizam os cuidados dos seus, nessa rede de mulheres que cumprem tripla jornada para manter o emprego e vencer os boletos do final do mês.
Monica Iozzi em cena.
Escrito e dirigido por Dainara Toffoli, Mar de Dentro marca a estreia da cineasta na direção de longas de ficção e traz Monica Iozzi no papel de Manuela. “Mar de Dentro é como se a gente tivesse uma janela de um ano, mais ou menos, na vida de uma mulher. É um convite à contemplação do processo de transformação na vida dessa mulher. É um filme de nuances, com muitos silêncios”, comentou Monica.
Graduada em jornalismo, Dainara tem longa carreira na direção, transitando entre as áreas de documentário, ficção e publicidade. Para levar adiante uma história tão autoral quanto universal, era preciso uma equipe de produção que entendesse as especificidades de um projeto como Mar de Dentro. Quem assina a produção do longa é Eliane Ferreira, à frente da Muiraquitã Filmes: “Este é um filme de mulheres. Há dez anos ninguém falava sobre isso. Tateamos um lugar que depois se tornou mais que um assunto, virou uma luta. Foi um processo duro, mas recompensador”, disse Eliane.
Além de Monica Iozzi, o elenco conta também com Rafael Losso, Gilda Nomacce, Fabiana Gugli, Zé Carlos Machado e Magali Biff. Glauco Firpo assina a direção de fotografia; a direção de arte é de Fernando Timba; Diana Galantini assina a produção de elenco; e Aline Canela o figurino.
Com estreia prevista para 2021, o longa se insere em um contexto global que traz cada vez mais olhares e temas diversos ao cinema. Em tempos em que se discute a questão da paridade de gêneros tanto na frente quanto atrás das câmeras, um projeto que trata da maternidade com contundência ganha destaque em um mercado cada vez mais plural, em que narrativas levam em conta que metade do público é formado por mulheres.
Para falar mais sobre Mar de Dentro, entrevistamos a diretora Dainara Toffoli por e-mail. Confira:
Mar de Dentro fala de uma realidade tão comum na vida das mulheres, mas pouco retratada nas telonas. Como surgiu a ideia desse roteiro?
Foi justamente este meu ponto de partida. Quando eu tive filho percebi o quão pouco eu sabia sobre a maternidade e comecei a refletir sobre isso. Não é à toa que, com as redes sociais, surgiram tantos grupos e redes de mães para trocar dicas práticas e, também, ter uma rede de apoio emocional. Na nossa cultura, criar filhos é responsabilidade da mulher, sozinha, com ou sem marido. A licença paternidade de 5 dias já estabelece esta dinâmica. Isso é muito cruel. É cruel com os homens que querem estar mais presentes, mas é muito mais cruel com as mulheres. Acho que há um tabu de expor o mundo privado e que é, por outro lado, uma forma de esconder este momento de empoderamento do feminino.
A diretora Dainara Toffoli: estreia em longa-metragem de ficção.
É interessante a maneira como a vida da protagonista é colocada em cena, sem romantizar tudo: seus afazeres profissionais, pessoais, o romance, a angústia de seguir em frente com a maternidade e as consequências (tanto positivas como negativas) de encarar essa realidade. Mostrar a vida como ela realmente é sempre foi uma opção?
Intuitivamente, sim, pois parti de minha experiência física e psicológica com a maternidade. Gosto de fazer documentário, de observar as pessoas sem julgar a lógica do mundo delas e, também, gosto de filmes onde percebemos menos as encenações e artifícios do cinema. Mas ainda nas últimas versões de roteiro e na filmagem, eu tinha cenas para fazer avançar o plot. Eu tinha, o que a gente chama, da trilha da aventura por onde a personagem passava enquanto vivia a questão mais importante do filme que é a maternidade. Quando cheguei na montagem, o Willem Dias, montador e eu, começamos a cortar algumas dessas cenas e, percebemos que o filme ficava mais forte. Fizemos algumas cabines com amigos e isso se comprovava. Então fomos lapidando mais. Acho que isso só foi possível pelo incrível trabalho da Monica Iozzi e do time de atores excelentes que toparam fazer o filme. Diria que este filme é assim porque ela me trouxe esta presença muito natural em cena.
Você acredita que existe um certo tabu (e também preconceito) em falar de maternidade? Falar das dores, das alegrias, da solidão, das angústias e das tantas emoções que esse momento causa na mulher?
Totalmente, chega a ser conspiratório (risos). Há uma pesquisa da FGV de que cerca de 50% das mães são demitidas, sem justa causa, depois que voltam a trabalhar. Apenas no primeiro semestre deste ano, 6.31% das crianças foram registradas sem o nome do pai em um país onde o aborto não é legalizado e que tem altíssima taxa de feminicídio. Crimes cometidos majoritariamente por maridos, ex-maridos, namorados, etc. São muitas violências normalizadas em um mundo onde as instituições e as leis são feitas por homens.
Casal em cena: Monica Iozzi e Rafael Losso.
Como você chegou no nome da Monica Iozzi para a protagonista? E como foi a preparação e o entrosamento no set?
Eu tinha uma outra atriz para o projeto que foi uma grande parceira e eu teria tido um enorme prazer de trabalhar com ela, mas quando conseguimos finalizar a captação e marcar a filmagem, ela não teria agenda por quase um ano. Comecei a pensar em outros nome quando fui assistir ao filme de um amigo e vi a Monica. A interpretação dela me encantou porque ela vestia a personagem de um jeito muito natural e era isso que eu buscava.
Participar da Mostra de São Paulo é uma grande vitrine para qualquer produção, ainda mais esse ano com uma edição on-line e com abrangência maior. Como tem sido a recepção do público, mesmo que virtual?
Tem sido uma experiência diferente e a falta dos encontros presenciais e do calor humano foi compensada por um alcance muito maior do filme. Esta foi a primeira vez que Mar de Dentro foi exibido no Brasil e eu estava apreensiva. Não sabia se as pessoas iam se identificar e foi muito gratificante receber tantas mensagens e tantos depoimentos sobre como o filme às impactou, que nunca tinham assistido nada tão próximo à experiência real que tinham tido… enfim, ufa. Penso que chegamos no lugar que intuitivamente queríamos.
Entrevista e edição: Vitor Búrigo
Fotos: Divulgação.