Diretora premiada esteve no Brasil recentemente.
Nascida na Argentina, a cineasta Lucrecia Martel, um dos maiores nomes do cinema contemporâneo, tem colocado seu trabalho na comunidade internacional do cinema e seus filmes costumam participar de importantes festivais. Em Cannes, apresentou A Menina Santa, em 2004, e A Mulher Sem Cabeça, em 2008, na Competição Oficial; no Festival de Berlim, em 2001, concorreu ao Urso de Ouro com O Pântano.
Zama, seu mais novo trabalho, que já está em cartaz nos cinemas brasileiros, foi indicado ao Goya e ao Prêmio Sur, premiado nos festivais de Havana e Roterdã e escolhido como o representante argentino para disputar uma vaga entre os finalistas ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
O longa, com coprodução brasileira de Vania Catani, da Bananeira Filmes, retrata a trajetória de Zama, vivido por Daniel Giménez Cacho, um oficial da Coroa Espanhola nascido na América do Sul, que aguarda uma carta do Rei autorizando-o a se transferir da cidade em que vive estagnado para um lugar melhor. Para garantir a transferência, Zama se ver forçado a aceitar todas as ordens e tarefas que são passadas por consecutivos governantes ao longo dos anos. Quando percebe que a tal carta não vai chegar, ele decide se unir a um grupo de soldados em busca de um perigoso bandido.
Daniel Giménez Cacho: protagonista.
Para divulgar o filme, Lucrecia esteve no Brasil recentemente e participou de uma conversa com a imprensa, na qual o CINEVITOR foi convidado, na sede da Vitrine Filmes, em São Paulo. Acompanhada pela produtora Vania Catani, falou sobre Zama, coprodução brasileira, história da América Latina e refletiu sobre o presente, o passado e o futuro.
Confira os melhores momentos do bate-papo com Lucrecia Martel:
ROTEIRO E FOTOGRAFIA:
“Eu escrevi o roteiro [baseado no livro homônimo de Antonio Di Benedetto] entre 2011 e 2015. Quando eu leio um livro, imagens e sons vão surgindo em minha mente. E tudo isso que aparece quando lemos um livro, junto com seus significados, fica próximo do cinema”.
“Quando eu converso com o diretor de fotografia, debatemos imagens de referência para estabelecer um critério. O mais importante para Zama foi a instrução de situar o espectador no passado”.
EQUIPE BRASILEIRA:
“A Vania Catani está desde o início do projeto. Na época do lançamento de A Mulher Sem Cabeça, ela entrou em contato comigo para pensarmos em alguma história sobre a Clarice Lispector. Mas acabou não acontecendo. Retomamos o contato quando eu comecei a procurar produtores para financiar o Zama e nos conectamos imediatamente. Esse filme é diferente de todos, pois se passa na fronteira. Então, a participação do Brasil, particularmente, era muito importante. Tinha muito sentido ter alguém do Brasil, não só financeiramente, mas também como suporte. E fico muito feliz com isso, pois a coprodução com outros países não significa apenas dinheiro. O Brasil está presente em diversas partes, temos a Renata Pinheiro na direção de arte, por exemplo, e conversamos muito sobre as referências, como o barroco latino-americano. Tem muito elemento da cultura brasileira”.
“Na equipe, temos quatro atores brasileiros [entre eles, Matheus Nachtergaele e Mariana Nunes], a diretora de arte [Renata Pinheiro] e a equipe de cenografia, tem a Karen Harley na montagem e a música dos índios Tabajara“, completou Vania Catani.
Matheus Nachtergaele em cena do filme.
COPRODUÇÃO:
“O fato de ir atrás de tantos produtores é porque está cada vez mais difícil realizar um filme com uma certa liberdade, sem compromisso com o mercado, mas sim, com o espectador. Não foi fácil conseguir esse dinheiro, por isso procurei tantos produtores”.
[Os países que assinam a coprodução de Zama são: Brasil, Espanha, República Dominicana, França, Holanda, México, Suíça, EUA, Portugal e Líbano].
REALIDADE:
“Muitos críticos pensam que a relação mais forte que um diretor tem com o cinema é o próprio cinema. Mas, não. Nossa relação está relacionada com a maneira em que observamos o mundo. Precisamos refletir mais a realidade, ainda que não tenha sentido. Como aceitamos, por exemplo, um trabalho que não estamos de acordo? Quem aqui tem o tempo livre que precisa?”.
“Não só no Brasil, mas em muitos outros lugares, há uma cobrança por mais participação das mulheres em muitas áreas, assim também está acontecendo com os negros e com os índios, culturalmente falando. Tudo isso reflete na realidade”.
“Todos os países latino-americanos seguem dependentes economicamente. Está muito claro neste governo brasileiro e também no argentino, que eles governam não para nós, mas sim para outros negócios. Então, quão independente nós somos?”.
Lola Dueñas interpreta Luciana Piñares de Luenga.
INDEPENDÊNCIA:
“Há um discurso histórico no Brasil, na Argentina, no Chile, no Peru, no México, em toda a América Latina, que indicava que uma grande mudança aconteceria a partir da independência. Mas, eu penso que o pior da história dos nossos países começou com a independência. O momento mais obscuro da nossa história começa com a independência porque nossa própria burguesia criou a escravidão e a expulsão indígena, por exemplo. Claro que algumas coisas mudaram, mas mesmo depois da abolição ainda existem pessoas trabalhando em condições precárias na Argentina. Então, que distância temos das colônias? Por isso, neste filme, me preocupava ficar distante dessa coisa heroica do passado”.
FICÇÃO CIENTÍFICA:
“As próximas gerações terão oportunidade de pensar no passado como ficção científica. Porque o passado, oficialmente contado para nós, é muito falso. É mais provável acertar na ficção do que com a própria história. Por isso, em Zama trago esse passado como uma espécie de ficção científica, já que esse gênero traz uma certa liberdade para pensarmos no futuro. Quais são as fontes que realmente temos pra saber sobre o passado? Há muito pouco. É preciso pensar no passado com mais liberdade”.
REFLEXÃO:
“Chega de pensar só no futuro. Pense no agora, pois há algo urgente, imediato. As mulheres, por exemplo, estão cansadas porque já não querem mais saber só do futuro, elas querem que se resolva agora, já! O que eu gosto de Zama é essa mensagem contrária ao neocristianismo que está tão forte e presente em nossa cultura”, finalizou Lucrecia.
Fotos: Divulgação.