Entrevista: Raquel Hallak d’Angelo, coordenadora da Mostra de Cinema de Tiradentes, fala sobre o evento, cinema brasileiro e mercado audiovisual

por: Cinevitor

raquelmostratiradentesRaquel Hallak d’Angelo com Fernanda Hallak d’Angelo e Quintino Vargas Neto.

A 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes segue até o dia 26 de janeiro com uma diversidade da produção cinematográfica brasileira na programação. Neste ano, 108 filmes, em pré-estreias mundiais e nacionais, de 14 estados, foram selecionados.

O tema desta edição, Corpos Adiante, apresenta o corpo como potência, pendor político e social, presença, infinitude. A celebração do corpo, em todas as suas possibilidades de expressão e enunciação, se destaca na programação.

Para falar mais sobre o evento, que abre o calendário audiovisual brasileiro, conversamos com Raquel Hallak d’Angelo, uma das diretoras da Universo Produção e também coordenadora da Mostra de Cinema de Tiradentes. Em entrevista ao CINEVITOR, Raquel falou sobre a homenageada deste ano, Grace Passô, processo de seleção dos filmes, a atual situação do cinema brasileiro, o mercado audiovisual e a relação do festival com público e realizadores.

Confira os melhores momentos do bate-papo:

PROCESSO DE SELEÇÃO

“Muitas vezes saímos daqui com uma ideia do que vai ser a próxima edição pelo processo de reflexão que é gerado no festival: de encontros e de pessoas que já adiantam sobre seus próximos filmes. A proposta do evento é focar no cinema brasileiro contemporâneo e estamos o tempo todo atentos sobre o que os filmes estão nos dizendo, quem está na cena, quem está produzindo, como que a produção está se configurando nos estados. Ficamos o ano inteiro trabalhando nisso. Quando começa o processo de seleção, vamos confirmando se a temática que foi inicialmente pensada vai realmente ser configurada. No processo de seleção ela vai amadurecendo e ganhando corpo”.

“Distribuímos os filmes em mostras temáticas, como a Aurora, que são produções inéditas, sendo um diferencial do evento, que aposta nesses filmes e nos realizadores que estão em início de carreira; não por idade, mas que já fizeram até seu terceiro longa. Isso já dá um norte pra quem está no evento, para escolher o que vai ver. Tem também, por exemplo, a mostra Olhos Livres, que traz uma liberdade de expressão de diretores consolidados com uma carreira consistente e que permaneceram numa coerência de produção desde o início. Já a mostra Praça traz assuntos de interesse mais popular, para toda a família e que atinge todas as idades. Além disso, tem a Mostrinha, para o público infantil. Isso tudo cria um referencial de discussão”.

A HOMENAGEADA: GRACE PASSÔ

“Quando eu fiz o convite, ela levou um susto, pois não imaginava ser homenageada num festival de cinema. Até porque ela ainda está em início de carreira no cinema. Mas foi exatamente por isso. Ela está no começo, mas já tem uma carreira consolidada no teatro e queríamos mostrar esse talento para o segmento audiovisual. Essa homenagem aproxima muito as outras artes do cinema, que é também uma proposta dessa edição; essa quebra de paradigmas. A integração das artes não tem mais fronteira e é fundamental que aconteça”.

gracetiradentesrecebehomenagemGrace Passô com o Troféu Barroco.

VAGA CARNE

“É a primeira produção que a Universo Produção assina nesta área de produção de um filme. Foi um convite com ousadia e loucura. Fizemos esse filme em dezembro e ficou pronta agora, na véspera do evento [para ser exibido na noite de abertura]. Foi feito especificamente para a Mostra, mas já estamos pensando na trajetória do filme em outros eventos”.

O filme, exibido logo depois da homenagem, é uma recriação audiovisual do espetáculo Vaga Carne. Grace Passô convidou o diretor de cinema e de teatro Ricardo Alves Jr. para assinar a direção com ela. Os dois já estiveram juntos em outros trabalhos, como a peça teatral Sarabanda, onde dividiram a direção do espetáculo criado a partir do último longa de Ingmar Bergman.

equipevagacarneEquipe de Vaga Carne no palco antes da exibição.

CINEMA BRASILEIRO: CULTURA E NEGÓCIO

“A Mostra de Tiradentes nasce em 1998 para ser a grande aliada do cinema brasileiro e mantém a coerência até hoje. Quando começamos, também estavam começando as Leis de Incentivo. A mesma pergunta que eu escuto hoje eu ouvi há 22 anos, o que é uma pena, né? O festival acompanha essa retomada do cinema brasileiro e só vimos avanços e uma mudança muito grande, favorável, positiva e o quanto queremos andar pra frente. Eu sou muito positiva nesse aspecto. Não estamos vivendo só da arte pela arte e por isso temos que pensar também na cultura como um bom negócio. Esse entendimento é necessário e temos a missão de fortalecer. Mas é preciso pensar e mostrar o que a gente quer. Porque muitas vezes ficamos no embate e na discussão nesse plano mais imaginário do desejo ao invés de mostrar que já somos, já existimos e o que queremos daqui pra frente”.

“Vejo a Mostra de Cinema de Tiradentes como um instrumento propositivo para mostrar a nossa força, a força do cinema, a força da cultura. Esse é o recado que estamos passando nessa edição”

GERAÇÃO DE CONTEÚDO

“Estamos em um outro governo e isso é um pouco assustador porque o primeiro decreto é acabar com o Ministério da Cultura. Mas eu acho que temos um instrumento muito favorável porque representamos o segmento que produz conteúdo; com as redes sociais e com um canal difusor como o YouTube, que é o maior do mundo, por exemplo. Fazendo esse circuito de festivais e de telas alternativas é preciso estarmos muito unidos e fortes nesse propósito sobre o que a gente quer mostrar e acontecer. Lógico que dependemos diretamente de patrocínio. A Mostra de Tiradentes é um evento que não tem receita, não tem bilheteria. Então, é essencialmente patrocinado. Quando temos governos que ainda representam um cenário complexo de incertezas, temos que partir para a iniciativa privada. Sendo assim, temos que procurar os empresários”.

CINEMA BRASILEIRO: INDÚSTRIA

“A Fundação Getúlio Vargas acabou de lançar dados importantes sobre a ANCINE [Agência Nacional do Cinema]. Precisamos mostrar a questão dos bilhões que são movimentados. Sair desse lugar confortável e pensar: que segmento eu represento? O da indústria que mais cresce no mundo, que é o entretenimento. Precisamos mudar um pouco o foco do discurso, do posicionamento. Temos que ser mais proativos, mais unidos. Mostrar esse lado que a gente nunca teve a preocupação em explorar, que é o lado da economia criativa. Você passa um filme sem precisar sair do seu país para o mundo inteiro. É o cinema que molda o nosso olhar. Esse instrumento de transformação também social e educacional é o que temos a nosso favor”.

“O audiovisual dentro da economia é a indústria mais poderosa”

Os dados revelados pela Fundação Getúlio Vargas sobre os 27 anos de história da Lei Rouanet mostram que a Lei é benéfica à sociedade e seu impacto reverbera em 68 atividades econômicas diferentes, do transporte ao turismo, do setor alimentício às finanças. Ela representa apenas 0,3% da renúncia fiscal da União e oferece 400% de retorno e incremento para a cadeia produtiva. Em quase três décadas de Lei, cada real captado e executado via Lei Rouanet, ou seja, R$ 1,00 de renúncia em imposto, gerou em média R$ 1,59 na economia local. Ou seja, a economia criativa incentivada pela Lei Rouanet gerou, na ponta final, recurso 59% maior em relação ao que foi investido.

abertura1tiradentes2019Os dados foram exibidos no telão na noite de abertura.

“Todo mundo é um cidadão ativo do audiovisual, estamos produzindo o tempo todo. Se somos a indústria que mais cresce, mais até que a automobilística, fica a pergunta: para quem estamos dialogando? Onde estamos mostrando isso? A proposta dessa Mostra é para que sejamos um pouco mais empreendedores. Fazer um filme é empreender. O papel do produtor cinematográfico, do artista e do diretor é de empreendedor. Quando você tem essas funções muito bem definidas em uma produção, que gera renda e emprego, é preciso mostrar isso. Logo não teremos mais o circuito convencional do cinema. Vamos continuar querendo que nossos filmes ocupem as salas, mas queremos também outras coisas. Queremos que os filmes circulem em festivais internacionais, que ganhem o mundo, que ganhem às telas do VOD e todas essas plataformas digitais. Isso não tem mais volta. Agora, cabe a cada um esse entendimento”.

O setor audiovisual é um dos que mais cresce na economia do país. Cresceu a uma taxa média anual de 9,3% nos últimos anos, média muito acima do crescimento geral da economia. As atividades culturais e criativas já representam 2,6% do PIB brasileiro.

abertura2tiradentes2019O incentivo à cultura gerou riquezas à sociedade, não custos.

O MERCADO AUDIOVISUAL BRASILEIRO

“Precisamos entender essa configuração de mercado. Não é todo filme que vai para uma sala de cinema. Às vezes ele faz um circuito internacional maravilhoso. O Baronesa [dirigido por Juliana Antunes] é um exemplo disso [o longa foi o grande vencedor da mostra Aurora em 2017]: uma produção que custou 25 mil reais e rodou 14 festivais internacionais. Roger Koza foi o grande responsável por essa circulação internacional e enquanto o filme ganhava esse espaço, acabou entrando em circuito comercial. Coisa que nem se pensava quando foi exibido aqui. Ou seja, temos que estar atentos com o que chamamos de transmídia. Temos que amadurecer sobre essa questão de mercado. Você tem aquele filme de arte que vai ser filme de arte. Ele foi feito pra isso. Mas se você perguntar para qualquer realizador tudo que ele quer é que as pessoas vejam seu filme, seja em museus ou festivais”.

“Um filme não é feito para ficar na prateleira. Ele também não é feito para não ter acesso. Ele só se completa quando chega ao público”

“Se temos pessoas que estão cobrando do audiovisual e da cultura um posicionamento mais empresarial no sentido da atividade em si, não vamos ficar só no discurso da arte, não. Vamos mostrar o que aconteceu nesses últimos vinte anos”.

baronesafilmeFIMAndreia Pereira de Souza, protagonista de Baronesa.

A MOSTRA E O PÚBLICO

“Para o público, o evento é uma caixinha de surpresas. Os filmes, pelo menos a maioria, são exibidos como pré-estreias. Ou seja, as pessoas não conhecem, não sabem. E esse é o clima do festival: proporcionar que você consuma algo novo, por mais que você tenha suas amarras, suas dificuldades. Aqui você está em um cenário onde todos estão abertos para o que assistirão na tela mesmo que tenham dificuldades. Eu acho que esse desconforto é necessário para você criar um senso crítico, para mudar sua forma de ver, para ter uma tolerância com a diversidade. Para você ver, antes de mais nada, as pessoas como seres humanos e não pela cor, pela opção do gênero. Estamos todos no mesmo barco navegando. Eu acho muito bacana quando as pessoas se incomodam [com algum filme] porque mostra o poder que o cinema tem de tocar, de emocionar. Além disso, aqui, o debate também é fundamental. A partir do posicionamento no debate você começa a entender como que o filme foi pensado e o que ele quer dizer”.

“Você tem a oportunidade de discutir com quem realizou e de ter uma outra visão das cenas que viu. O papel do festival é esse. E do cinema também: se propor a ir além da exibição”

“O cinema está presente na nossa vida e na maneira como lidamos com as imagens. Exibe, forma, discute, difunde: assim se complementa nossa função no festival”, finalizou Raquel.

*O CINEVITOR está em Tiradentes a convite do evento e você acompanha a cobertura do festival por aqui, pelo canal do YouTube e pelas redes sociais: Twitter, Facebook e Instagram.

Fotos: Divulgação, Beto Staino e Leo Lara/Universo Produção e Vitor Búrigo.

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