Direção: Renato Terra, Ricardo Calil.
Elenco: Caetano Veloso.
Ano: 2020
Sinopse: No dia 27 de dezembro de 1968, Caetano Veloso foi retirado de sua casa em São Paulo, confinado em uma solitária por uma semana no Rio de Janeiro e depois transferido para outras celas. Ao todo, ficou 54 dias na prisão. Cinquenta e dois anos depois, o compositor traz memórias e reflexões sobre o período mais duro de sua vida. O artista faz um relato íntimo e detalhado sobre os dias na solitária, relembra e interpreta canções que marcaram o período de confinamento e revisita episódios dolorosos vividos com outros presos, como seu amigo Gilberto Gil, preso no mesmo dia.
Crítica: É sempre um deleite ouvir Caetano Veloso. Seja em suas canções potentes ou em uma entrevista na TV. Seja em uma apresentação musical ou em um vídeo que viraliza na internet. Seja em um videoclipe ou em um show. Tê-lo por perto é sempre prazeroso; seja nas redes sociais, em um livro ou no fone de ouvido. Ou em um filme. Em meio a uma pandemia, onde recomenda-se evitar aglomeração, o documentário Narciso em Férias, exibido no Festival de Veneza deste ano, chega para o grande público direto em streaming; no conforto do lar do espectador. Os aplausos ao final da sessão serão mais comedidos, pelo menos por aqui, já que a plateia estará diante de uma TV ou da tela de um celular ou computador. A poltrona será o sofá de casa, ou talvez um travesseiro encostado na cabeceira da cama, e a pipoca será feita no micro-ondas. Mas, ainda assim, quando aperta-se o play, as luzes se apagam e Caetano, que logo aparece em cena, toma conta do nosso cinema particular. Como se fosse o começo de um show, os holofotes estão desligados e uma música marca a introdução do espetáculo. Logo, o artista aparece no palco, para a alegria de seus admiradores. Diante de uma parede de concreto, o cantor está sentado em uma cadeira, de pernas cruzadas. Parece o cenário de um show. Porém, a partir deste momento, a voz deste artista reverberará de maneira diferente. Dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, Narciso em Férias relembra a prisão de Caetano Veloso durante a ditadura militar depois do decreto do AI-5. Não há imagens de arquivo ou outros entrevistados que passaram pela traumática situação, como Gilberto Gil, Paulo Francis ou Ferreira Gullar. É apenas Caetano Veloso em cena, falando ao longo de 84 minutos. Com uma riqueza de detalhes, o artista relata os 54 dias que passou encarcerado. Começa com a noite anterior, onde relembra as músicas que escutava entre amigos sem nem imaginar o que aconteceria horas depois. Fala da solitária, do jornal velho no chão e da falta de se olhar no espelho; que fosse pelo simples fato de arrumar o cabelo diante de seu reflexo, mas muito mais pelo fato de voltar a se reconhecer e se enxergar fora daquele lugar. No resgate dessa memória perturbadora, entre devaneios, Caetano faz uma comparação entre a lágrima e o gozo, da maneira mais sublime que um artista do seu nível intelectual e poético poderia fazer; como se sentir vivo mesmo com um bloqueio para expelir suas angústias ou prazeres em uma situação que não lhe permitia tais feitos? O protagonista também relata uma certa euforia em ver gente, conta que ouvia gritos de tortura e fala sobre a reafirmação da escravidão. Quando relembra um episódio em que leu uma matéria na revista Manchete, se emociona e pede uma pausa na filmagem. Até então, Caetano seguia firme, ainda que visivelmente emocionado em muitos momentos; mas quando revive tal situação que, na época, o colocou mais perto daquela realidade que sentia falta, não consegue conter as lágrimas. Um dos momentos mais bonitos e sensíveis do filme, mesmo envolto em uma melancolia carregada por um turbilhão de sentimentos; dores e feridas, quem diria, causadas por imagens inéditas da Terra vista do espaço em um exemplar de uma revista semanal foram transformadas em música anos depois. Com Caetano Veloso em cena o tempo todo, preenchendo aquele espaço com sua presença possante e gesticular, o longa é filmado de maneira intimista e sem muitas variações de enquadramento para não desfocar do tema proposto (e isso basta quando se tem um personagem tão interessante que prende a atenção por si só). Ainda que se estabeleça como um registro audiovisual importante e necessário sobre o artista e seu país, o documentário se expande, em breves momentos do depoimento (notórios mais no início), causando uma leve oscilação entre ritmo, dinamismo e a força das palavras de seu entrevistado, que se sobressaem à tela. Porém, após a pausa sugerida pelo próprio, como se fosse um intervalo de seu show, Caetano volta ao som de Hey Jude. Ainda com as pernas cruzadas e no mesmo cenário, conta agora com seu violão. O espetáculo se prepara para os momentos finais, mas, antes disso, ainda relembra a risada da irmã mais nova e começa a ler um documento com o seu interrogatório, momento esse que engrandece a narrativa. Ri em diversos momentos, principalmente quando o acusam de subversivo e desvirilizante, fala de autores liberais, socialismo, do amigo Rogério Duarte e esclarece o motivo de sua prisão. Narciso em Férias não só escancara fantasmas do passado de um dos períodos mais violentos do Brasil, mas também mostra o quão é assustador o fato de que podemos reviver tudo isso a qualquer momento. Fala-se de memória, mas também do futuro. Hoje, cinquenta e dois anos depois do ocorrido com Caetano, e com tantos outros brasileiros, é possível enxergar ainda mais que a censura se reaproxima de vozes que não optam pelo silêncio e pela impotência. Atualmente, mesmo com lutas diárias e com um amplo engajamento de resistência, vivemos um momento nebuloso tomado por fake news, que propagam em redes sociais ou grupos de WhatsApp com uma força descomunal capaz de eleger governantes fascistas. Se olharmos para trás, é nítido reconhecer que essas tais notícias falsas não surgiram apenas nessa era tecnológica de julgamentos incoerentes e cancelamentos virtuais. Elas existem, afetam e delegam poderes desde sempre. Desde Caetano, como visto no filme. Por isso, é sempre um deleite ouvi-lo. Seja para se emocionar com suas canções ou com suas histórias que o moldaram como ser pensante e necessário para os dias atuais; um artista que se expressa, que transforma vivências em música e que presenteia o público com sua arte. Narciso em Férias amplifica a memória e o silêncio do seu protagonista. É sobre ontem, mas também sobre hoje. É preciso estar atento e forte. (Vitor Búrigo)
Nota do CINEVITOR: