Um Dia com Jerusa: diretora Viviane Ferreira e equipe falam sobre o filme exibido na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes

por: Cinevitor

jerusatiradentes2Mulheres do audiovisual participam de debate.

Depois de dirigir o curta-metragem O Dia de Jerusa, a cineasta Viviane Ferreira resolveu expandir a história e realizar o longa Um Dia com Jerusa, que foi exibido no domingo, 26/01, na 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes dentro da programação da mostra A imaginação como potência.

O filme conta o encontro da sensitiva Silvia, interpretada por Débora Marçal, uma jovem pesquisadora de mercado que enfrenta as agruras do subemprego enquanto aguarda o resultado de um concurso público, e da graciosa Jerusa, papel de Léa Garcia, uma senhora de 77 anos, testemunha ocular do cotidiano vivido no bairro do Bixiga, recheado de memórias ancestrais. No dia do aniversário de Jerusa, enquanto espera sua família para comemorar, o encontro entre suas memórias e a mediunidade de Silvia lhes proporciona transitar por tempos e realidades comuns às suas ancestralidades.

No dia seguinte à exibição do longa, a diretora Viviane Ferreira participou do seminário Encontro com os filmes ao lado das atrizes Léa Garcia e Débora Marçal e da diretora de fotografia Lílis Soares. O bate-papo foi mediado por Lila Foster, curadora, com a participação de Letícia Bispo, crítica convidada.

Confira os melhores momentos da conversa e clique aqui para assistir ao programa especial com entrevista com a atriz Léa Garcia:

O FILME

“Um Dia com Jerusa é um processo que nasceu expandido e é importante que a gente possa expandir a direção dos olhares. Eu preciso ser muito honesta com vocês e talvez até correndo o risco de ser pretensiosa, e se for peço desculpas antecipadas: não é um filme para todo mundo. Não é um filme para ser compreendido por todo mundo. Não é um filme para agradar gregos e troianos. Quiçá, não é nem um filme para festivais. Porque a nossa preocupação em propor essa narrativa, dessa forma, é outra. É um filme para conectar pessoas no mundo que trazem em um corpo uma memória coletiva. Às vezes, a gente não consegue explicar a origem dessas memórias e o motivo de se reconhecer na existência do outro, no olhar do outro, no toque. Mas, os marcadores históricos de nossas memórias coletivas ancoram esse sentir”, comentou a diretora.

“O roteiro não está preocupado com as regras da narrativa clássica do audiovisual e não é por não ter estudado ou por não saber. É exatamente por permitir que a gente pudesse, em grupo, experimentar e romper com uma fórmula de fazer, que a gente também não teve a possibilidade de aprender porque não tivemos acesso aos recursos necessários. De certa forma, é um filme que se alicerça na generosidade de Jerusa em compartilhar toda a sua memória e toda a sua vivência com Silvia. Ele se alicerça na generosidade de uma equipe que saiu de diversos lugares do Brasil para morar em São Paulo e garantir que o filme acontecesse”, completou.

“Nunca tivemos tanta oportunidade de criar e pensar imagens. Estamos em um período da humanidade em que nunca se consumiu tanta imagem. Então, nunca foi tão necessário falar sobre estética, sobre representação, e sobretudo, sobre repercussão de estética branca, que o crime nos desvaloriza, que nos subjuga. Como criadora de imagens, eu sempre penso em todos esses fatores e, principalmente, no processo fílmico como uma oportunidade de estabelecer relações não tão hierárquicas e opressoras”, disse a diretora de fotografia Lílis Soares.

E completou: “No Brasil é sempre tudo muito complicado e incerto. De 2016 pra cá houve uma abertura que propiciou que pessoas com o meu perfil pudessem ter um pouco mais de oportunidade. A Vivi [diretora] me deu essa oportunidade de construir algo que é o meio de um processo longo de estudo, de ver filmes, de se sentir incomodada, mas também de pensar em novas estéticas, cores, texturas”.

jerusatiradentes1A diretora Viviane Ferreira durante o bate-papo.

REALIZAÇÃO

“O que eu senti fazendo esse filme é que não só o desenvolvimento da subjetividade das personagens, mas da gente enquanto mulher preta no lugar que estamos hoje. Eu fiquei pensando sobre precisar criar uma outra forma de fazer porque a forma que existe é pensada e construída a partir de homens brancos”, disse a atriz Débora Marçal.

“Quando a gente se vê na TV ou no cinema, e eu falo muito de TV porque fui criada em frente à televisão, as referências que tenho são essas personagens que vocês também tem. São só as mesmas e são repetições: mulheres escravizadas, em situações subalternizadas marginalizadas, sexualizadas. E quando a gente cresce, a gente entende que só pode ocupar esses lugares. Nossa construção imagética passa por aí. E quem constrói isso? Quem constrói isso, constrói a partir dessas ferramentas que já existem. Então, estar em um set, com 90% da equipe de mulheres negras é bem revolucionário. Chega um momento que parece que você não está naquele lugar. Parece um sonho, mas não é. A forma que foi construída e como as escolhas foram executadas caminham para um lugar de reinvenção. A ferramenta está ali e precisa ser reorganizada e reinventada a partir da gente. Eu entendi esse filme com uma sutileza que sei que vou ser respeitada como artista, como produtora de conhecimento, de estética e de poética negra”, completou.

“Nós, mulheres negras, somos extremamente diferentes, variadas, plurais. Eu estou pensando numa assinatura que é minha, mas eu não posso falar que é de todas. No entanto, eu sei que eu posso impulsionar outras a estarem naquele lugar e como é importante estar nesse lugar. E como é importante respeitar as pessoas que estão conosco e ver o potencial de cada uma. Fotografar a Léa é uma honra de um tamanho inimaginável na minha trajetória. Eu estou muito feliz. Esse filme representa tudo isso, é tudo misturado, é tudo junto. Pra mim, não é o processo que silencia e nem termina nele, é o meio mesmo. Pra gente debater, contar e direcionar coisas”, comentou Lílis Soares.

“O trabalho da Vivi com esse filme é pegar essa realidade que a gente sonha e colocar isso na tela. É um choque muito grande. É como se fosse um depoimento. Fui criada vendo televisão com Xuxa, Mara, Angélica e todas essas atrizes globais, maravilhosas e brancas, e de repente você tá numa tela de cinema, vendo sua cara em um tamanho que você nem consegue imaginar. É surreal. É muito importante, é um presente. Eu agradeço por ter feito parte de tudo isso. Foi um processo incrível de viver outras possibilidades”, revelou Débora.

jerusatiradentes3A atriz Léa Garcia em cena.

O PROCESSO

“Tomamos decisões bem arriscadas ao longo do processo. E decisões orientadas pela ancestralidade. Eu conversei muito com uma galera branca, que é amiga, generosa e troca experiência. Pedi conselhos de como eu poderia conduzir o processo, afinal de contas, seria meu primeiro longa-metragem de ficção. E quem nunca teve medo da primeira vez? Teve um conselho que eu recebi, de quase todo mundo, que já estava ali no seu terceiro, quarto longa; estou falando das amigas brancas que tiveram mais acesso ao recurso. A galera me dizia que eu tinha uma oportunidade única na mão, uma atriz fabulosa e que eu precisava de um diretor de fotografia foda, um diretor de arte e de produção fodão, pessoas que trabalharam em doze longas. Primeiro, eram todas indicações masculinas e brancas. E todas elas me diziam que no final eu me sentiria muito segura porque essas pessoas têm muita experiência e vão garantir um set fantástico pra você. Eu agradecia, voltava pra casa desesperada e pensava: ‘Se eu chamar essa galera, que horas eu vou dirigir? Se todo mundo sabe tanto, já fez tanto, qual vai ser o meu momento de experimentar?’. E aí virou a chave de tudo que eu ouvi. Acolhi muitos dos conselhos que recebi, esse eu não precisava. Esse eu escolhi não usar”, revelou a diretora.

“Decidimos compor uma equipe recheada de primeiras vezes. Temos muitas mulheres negras na chefia de equipes, assumindo seus lugares em um longa-metragem de ficção pela primeira vez, inclusive eu. Isso pra gente foi importante durante o processo porque todo o tempo a gente relembrava do nosso direito de errar”, completou.

“Era um filme que tínhamos consciência que a descrença era muito maior do que a crença, inclusive da nossa possibilidade de fazer. Eu sempre dizia que não podíamos assumir a responsabilidade de entregar uma obra-prima porque é o nosso primeiro e não existe gênio na cinematografia que não tenha tido a possibilidade de experimentar. A gente se exigiu experimentar e respeitar o nosso direito de errar. A partir daí, acertamos bastante. Eu sou muito feliz com a família que se constituiu em torno do filme e com o resultado que a gente conseguiu chegar. E aí a gente só pode agradecer ao orixá”, finalizou Viviane.

*O CINEVITOR está em Tiradentes a convite do evento e você acompanha a cobertura do festival por aqui, pelo canal do YouTube e pelas redes sociais: Twitter, Facebook e Instagram.

Fotos: Netun Lima, Universo Produção/Divulgação.

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