A programação da Mostra Histórica da 18ª edição da CineOP enfatiza a presença da criação musical de artistas pretas e pretos nas trilhas sonoras e nos elencos de filmes e novelas, como personagens em ficção, documentários, videoclipes e performatividades variadas.
Um dos destaques desta seleção da Mostra de Cinema de Ouro Preto foi o longa Uma Nega Chamada Tereza, de Fernando Coni Campos e lançado em 1973, um clássico perdido do cinema brasileiro. Inédito há décadas, a comédia ficcional mostra o cantor Jorge Ben Jor na história de um casal de africanos que vem participar de um festival da canção no Brasil. O filme é, possivelmente, entre todos os títulos programados para o segmento histórico da CineOP, o de exibição e conhecimento mais raro.
Há pouco material escrito sobre o título, mesmo em seu ano de lançamento. Não é uma das obras mais celebradas de seu importante diretor e também não está colado diretamente à imagem de Jorge Ben Jor. O filme foi realizado num contexto de época em que músicos de grande popularidade eram chamados para serem personagens principais em filmes nos quais eles faziam versões ficcionais de si mesmos (o caso mais conhecido é o de Roberto Carlos e sua trilogia dirigida por Roberto Farias nos anos 1970).
A sessão de Uma Nega Chamada Tereza na CineOP aconteceu no sábado, 24/06, no Centro de Convenções da UFOP, e foi apresentada pela pesquisadora Isabel Mello. No palco, ela relembrou que Coni Campos, cineasta reconhecido por filmes reflexivos e existenciais, foi procurado pela produtora Aurora Duarte com o roteiro pronto, já pensado para Jorge Ben. Diversos problemas e desentendimentos de produção provocaram a insatisfação do realizador com o resultado do trabalho: “O Coni se dizia chateado porque não teve ingerência no corte final e não gostou de como o filme acabou sendo feito”.
E completou: “É um filme com algumas questões bem visíveis que estão muito envolvidas com o próprio processo de produção. A Aurora Duarte tem uma versão sobre isso e o próprio Coni Campos tem a sua. Eu consegui acompanhar tudo isso através da troca de correspondência e também pela trajetória crítica nos jornais, além do processo de exibição e distribuição do filme”, disse Isabel.
Jorge Ben Jor e a produtora e atriz Aurora Duarte nos bastidores
Coni Campos faleceu em 1988 e foi representado, em Ouro Preto, por seu filho, o músico Ruben Campos. Logo após a sessão, ele conversou com o público e relembrou a dificuldade do pai em ter autonomia no projeto de Uma Nêga Chamada Tereza porque o contrato não permitia mudanças no roteiro, que ele considerava ruim. “É um filme bem louco, como todos repararam. Meu pai foi convidado para dirigir um roteiro, que ele próprio constatou, infilmável por questões técnicas e por ser uma história fraca. Ele tinha um outro filme na cabeça e que gostaria de fazer, que se chamaria Tupi or not Tupi, um filme bem oswaldiano”. A gravidez da atriz Pepita Rodrigues antes das filmagens acabou forçando a produção a alterar alguns rumos da história, e Coni aproveitou para inserir novos personagens que dessem outros fluxos ao enredo.
Lançado no ápice da ditadura militar, o filme sofreu cortes da censura federal: “A ditadura não deixou passar muita coisa que falava de racismo. O governo queria manter a falsa ideia de que a questão racial era coisa dos EUA, não do Brasil”, contou Ruben Campos. Segundo o filho, Fernando Coni cogitou retirar o próprio nome do filme, por não ter nem visto a montagem definitiva, mas acabou mantendo: “Assistindo hoje, percebemos muitas questões atuais, até mais do que na época em uma série de camadas”, finalizou.
Em Uma Nega Chamada Tereza, exibido em Ouro Preto com cortes da censura militar, Jorge Ben interpreta a si mesmo e também a um sósia do cantor Jorge Ben envolvido numa série de confusões para levá-lo a um festival de música. O elenco tem ainda Antonio Pitanga como um homem vindo da África para ensinar aos brasileiros de que forma pensar a cultura e relevância negra no país; e Marlene França, Carlos Alberto Batista, Lirio Bertelli, Arnaud Rodrigues, Irene Kramer, Marina Montini, a própria Aurora Duarte, entre outros.
Outro título que se destacou na programação da CineOP foi a nova versão digital de A Rainha Diaba, clássico de Antonio Carlos da Fontoura, lançado em 1974, que foi exibido no mesmo dia, só que na Mostra Preservação, e contou com a presença do diretor. Coordenado pela preservadora audiovisual Débora Butruce, o projeto de digitalização 4K, realizado em 2022, destaca a atualidade desta obra referencial do cinema brasileiro prestes a completar 50 anos. A nova cópia digital foi apresentada em fevereiro na programação do Festival de Berlim.
O diretor Antonio Carlos da Fontoura no Encontro de Arquivos
No palco, antes da sessão, Antonio Carlos da Fontoura discursou: “A Rainha Diaba, que fiz há 50 anos, se tornou o meu mais novo filme. E isso é muito interessante. Todo o potencial do filme, que foi muito forte nos anos 1970, encontra agora um novo público, que dá uma nova feição. Os olhos de quem assiste é que fazem os filmes”, disse.
Protagonizado por Milton Gonçalves, que foi premiado como melhor ator no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1975 [o longa também levou o Candango de melhor fotografia para José Medeiros], a sinopse diz: do quarto dos fundos de um bordel, a cruel Rainha Diaba controla o tráfico de maconha. Para livrar da prisão um belo protegido, a Rainha ordena que Catitu, seu braço direito, envolva em uma onda de crimes o ingênuo Bereco, gigolô da cantora de cabaré Isa, para entregá-lo à polícia. A situação sai do controle da Rainha e tudo se decidirá de maneira sangrenta.
O elenco conta ainda com Odete Lara, Stepan Nercessian, Nelson Xavier, Yara Cortes, Wilson Grey, Edgar Gurgel Aranha, Haroldo de Oliveira, Geraldo Sobreira, Kim Negro, Sidney Becker, Zezé Motta, Hilton do Prado, Procópio Mariano, Selma Caronezzi, Samuca, Marquinhos Rebu, Arnaldo Moniz Freire, Lutero Luiz, Arthur Maia, Fabio Camargo e Carlos Prieto.
No dia seguinte à exibição, aconteceu, com mediação de Fernanda Coelho, curadora da Temática Preservação, o Encontro de Arquivos: Case de Restauro. Participam da mesa o diretor de A Rainha Diaba, Antonio Carlos da Fontoura; Débora Butruce, preservadora audiovisual e coordenadora técnica da digitalização; e Aarão Marins, supervisor técnico do escaneamento.
*O CINEVITOR está em Ouro Preto e você acompanha a cobertura da 18ª CineOP por aqui, pelo canal no YouTube e pelas redes sociais: Twitter, Facebook e Instagram.
Fotos: Divulgação e Leo Lara/Universo Produção.