Entrevista: cineasta Dea Ferraz fala sobre Modo de Produção, documentário sobre um sindicato de trabalhadores rurais em Pernambuco

por: Cinevitor

modo2Trabalhadores rurais são destacados no filme.

No documentário Modo de Produção, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 13/02, o protagonismo cabe a um sindicato de trabalhadores rurais em uma pequena cidade pernambucana. Com direção de Dea Ferraz, o filme analisa os elos entre Capital, Estado e Justiça.

Todo dia, trabalhadores e trabalhadoras, de existências marcadas pela indústria canavieira, vão ao sindicato para tratar com os advogados sobre direitos, deveres, perspectivas de aposentadorias e demissões. E assim parecem cada vez mais enredados nas complexas relações entre Capital, Estado e Justiça. Nessa perspectiva, qual é o papel de um sindicato quando uma massa de trabalhadores segue à mercê de mecanismos burocráticos?

Modo de Produção faz do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Ipojuca, Canela e Nossa Senhora do Ó, a cerca de 60 km do Recife, seu personagem central. Um lugar por onde passa, a cada dia, uma massa de trabalhadores rurais, de vidas talhadas pela cana. Aposentadorias, demissões, vínculos laborais e um suposto desenvolvimento econômico-social que se avizinha como uma miragem distante ou, quem sabe, fantasma: o Porto de Suape.

Dirigido pela realizadora pernambucana Dea Ferraz, dos documentários Câmara de Espelhos, de 2016, e Mateus, de 2019, o filme foi rodado em 2013, montado em 2016 e exibido pela primeira vez em janeiro de 2017, na Mostra de Cinema de Tiradentes. Passou ainda no 6º Olhar de Cinema, na mostra Esses corpos indóceis do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ForumDoc.BH e no 10º Janela Internacional de Cinema do Recife.

Para falar mais sobre Modo de Produção, entrevistamos a diretora Dea Ferraz por e-mail. Confira:

Como surgiu a ideia de realizar esse documentário?

A ideia nasce em 2012, a partir de uma provocação de dois amigos, pesquisadores e jornalistas, Laercio Portela e Cesar Rocha. Na época, andávamos a conversar sobre os impactos de Suape na Região e no Estado, e na forma equivocada com que a mídia hegemônica exaltava o Porto como sendo o oásis do desenvolvimento brasileiro. Já naquela época queríamos pensar sobre essa escolha de desenvolvimento socioeconômico implantado pelos governos Lula/Dilma. Queríamos pensar sobre os impactos ambientais, sociais e humanos que o Porto provocava. E queríamos pensar sobre isso a partir do ponto de vista dos trabalhadores e trabalhadoras da região, majoritariamente pessoas que estavam nas usinas de cana de açúcar. Sendo assim, o primeiro contato na pesquisa de campo foi com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ipojuca, Gamela e Nossa Senhora do Ó, onde acreditávamos ser possível encontrar nossos personagens.

Acontece que ao entrar no Sindicato e depois de passar alguns dias acompanhando os atendimentos jurídicos, fiquei muito impactada pelo abismo explícito que demonstravam. Para mim, o sindicato, e aquela massa de trabalhadores e trabalhadoras que por ele passavam, dava a ver a brutalidade de um sistema perverso como é o Capitalismo e suas relações de trabalho opressoras. Justiça, Estado e Capital como abismos a serem pensados. O filme, portanto, assumindo um desejo de falar de modos de produção que se desdobram em modos de vida. De fato havia algo na pluralidade dos atendimentos que apontavam para condições de existências. Era o sistema como um todo que se apresentava muito claramente ali. Quando decidi filmar o sindicato, assumi o desejo de apontar para uma máquina de funcionamento que faz das pessoas suas engrenagens. Eu percebi que nos atendimentos essa máquina se apresentava, mas não “só” isso, neles também ouvíamos os relatos da vida de trabalho dessas pessoas. Seus horários, suas rotinas sem folga, sem férias, a dificuldade na relação com os empregadores, a insalubridade. Então esse acabou se tornando o foco do filme e Suape uma miragem distante, quase fantasma, como o plano final do filme.

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É interessante saber que o filme foi rodado em 2013, montado em 2016 e exibido pela primeira vez em 2017, sendo que ele ainda dialoga muito com os dias de hoje. Na sua opinião, como ele reverbera na situação atual do país?

Às vezes penso que a arte carrega um mistério tão profundo… a ponto de falar daquilo que está por vir. De fato, o filme se transformou muito, da sua ideia inicial à final. Em 2017 lançamos Modo de Produção na Mostra Tiradentes e naquele momento o país vivia a ameaça da Reforma Trabalhista, de Temer. Enquanto circulávamos pelos festivais, as propostas eram discutidas no congresso e no Senado. Agora, em 2020, o filme chega às salas de cinema, quando a Reforma já foi aprovada e o Governo Bolsonaro acelera a marcha de degradação do aparato de proteção social dos trabalhadores e trabalhadoras, extinguindo o histórico Ministério do Trabalho e promovendo alterações legislativas, como a Medida Provisória 905, que trata do contrato verde e amarelo, onde há a inédita taxação do seguro-desemprego, destinado aos desempregados e desempregadas.

Então sinto que o filme, de certa forma, acompanha tudo isso. E se em 2013 as condições de trabalho já eram precárias, agora tudo desaba numa brutalidade impressionante. Acho que o cinema, e nesse caso Modo de Produção, tem a capacidade de levantar questões atuais, que reverberam para além das telas, porque provocam o pensamento, a reflexão e a troca, na medida em que nos coloca em contato com as imagens e suas personagens reais. 

É revoltante ver algumas situações retratadas no filme que envolvem burocracias e problemas jurídicos com os personagens, que, muitas vezes, não sabem quais são seus direitos trabalhistas. Ao longo do processo de filmagem, você chegou a procurar os patrões e/ou responsáveis por essas indústrias de cana de açúcar? Se sim, teve alguma resposta? Eles sabiam da existência desse filme?

Durante as filmagens tentamos fazer imagens das lavouras de cana de açúcar, mas não fomos autorizadas. As únicas imagens que conseguimos são as últimas, quando vemos à distância alguns trabalhadores na cana, de um ponto de vista da estrada. Mas mesmo assim, depois de 20 minutos filmando, chegaram seguranças da usina, proibindo a gravação. De toda forma, os patrões não eram o foco. Pra mim sempre esteve muito clara a vontade de fazer ver o funcionamento de um sistema que é violento e opressor.

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“Acho que o cinema, e nesse caso Modo de Produção, tem a capacidade de levantar questões atuais, que reverberam para além das telas, porque provocam o pensamento, a reflexão e a troca, na medida em que nos coloca em contato com as imagens e suas personagens reais”

Como foi a repercussão do filme depois de ser exibido em alguns festivais? Com o público, com os trabalhadores, com os Sindicatos e com os patrões (caso tenham se manifestado)?

Como todo filme, Modo de Produção causa diferentes respostas, e acho que essa é a maior capacidade que a arte tem. Eu não acredito em filmes unânimes ou “perfeitos”, fechados neles mesmos. Acredito em processos, em buscas, em fendas e abismos. Cada filme como parte de um caminho, de uma entrega, de um tempo. Deixar que cada espectador encontre dentro de si as questões que lhe mobilizam e que lhe emocionam diante daquelas imagens. A forma que cada um vê e sente o filme se associa às vivências e histórias que cada um carrega. Nos festivais por onde o filme passou, como na Mostra Tiradentes ou no Olhar de Cinema, os debates foram muito importantes e as pessoas acabam falando muito sobre as próprias condições de trabalho, mesmo que sejam trabalhos na cidade. Para alguns, há uma identificação com a condição de vulnerabilidade do trabalho, que é tão forte hoje. Algumas pessoas se incomodam com o fato do filme não entrar na vida individual de cada trabalhador, mas acho que aí seria outro filme, com outros desejos. Também há quem se incomode com a temporalidade dilatada dos atendimentos, a repetição das situações. Mas esse é o cerne do filme: estar com os trabalhadores e as trabalhadoras, permanecer com eles e elas, na repetição de modelos históricos, para, quem sabe, dar a ver o Sistema.

Também exibi o filme em sindicatos e nesses espaços a reflexão passa não só pela identificação com as personagens, mas também por uma auto crítica ou auto reflexão. Foram sessões bonitas de viver. E depois das salas de cinema, estamos planejando uma distribuição pelo Estado de Pernambuco, em sindicatos, universidades e coletivos. Vamos ver agora, em 2020, o que o filme vai causar.

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O filme chega aos cinemas nesta semana, qual sua expectativa em relação ao público (não na questão de bilheteria e sim de reação)? Como você espera que ele dialogue com os espectadores?

Esse é sempre o momento mais difícil pra mim. A gente nunca sabe como o público vai se relacionar com o filme. Não há como prever e aí está, mais uma vez, o belo mistério da arte. É como disse antes, cada um deve sentir de um jeito muito específico. Mas claro que as expectativas se formam e o desejo é de que o filme seja capaz de despertar uma emoção, uma relação, um pensamento, algo que leve o espectador para dentro de si a partir da imagem que se apresenta. Exercício de alteridade e de relação. No caso de Modo de produção, uma relação de empatia com todos aqueles rostos que atravessam o sindicato e a tela. Que o filme, com toda sua claustrofobia, seja um instrumento por onde a vida escape, por onde a arte nos atravesse e por onde possamos ver o mundo que vivemos, para só então imaginar outros mundos.


Com distribuição da Inquieta Cine, Modo de Produção estreia no Recife e Triunfo, em Pernambuco; Aracaju (SE), São Luís (MA), Salvador (BA), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF) e Porto Alegre (RS).

Entrevista e edição: Vitor Búrigo
Fotos: Divulgação/Leo Lara, Universo Produção.

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