A noite de domingo, 15/08, da 49ª edição do Festival de Cinema de Gramado começou com a exibição de dois curtas-metragens em competição: o gaúcho Desvirtude, de Gautier Lee; e a animação amazonense Stone Heart, de Humberto Rodrigues. Além disso, o documentário Extermínio, de Mirela Kruel, encerrou a mostra competitiva de longas gaúchos deste ano.
Dirigido por Cláudia Pinheiro, O Novelo foi o terceiro filme da competição entre os longas-metragens brasileiros exibido na programação. Produzido por Diego Freitas e Luciano Reck, da Parakino Filmes, o longa conta a história de cinco irmãos que acabam sendo criados pelo irmão mais velho, após a morte da mãe. Um dia, já adultos, eles recebem a notícia de que um homem em coma na UTI pode ser o pai que os abandonou. Na sala de espera do hospital, eles mergulham em conflitos e memórias e, através do tricô aprendido na infância, restabelecem o vínculo fraterno enquanto o estado do homem piora.
Com roteiro escrito por Nanna de Castro, baseado na peça homônima de sua autoria, o filme conta com Nando Cunha, Rocco Pitanga, Sérgio Menezes, Rogério Brito, Sidney Santiago Kuanza, Isabél Zuaa e André Ramiro no elenco.
No dia seguinte à exibição, alguns integrantes da equipe participaram de um debate virtual, que foi mediado pelo jornalista Roger Lerina. Marcaram presença: a diretora Cláudia Pinheiro; a roteirista Nanna de Castro; e os atores Nando Cunha e Sidney Santiago Kuanza.
Questionada sobre a ideia do filme, Cláudia respondeu: “Uma amiga me apresentou à Nanna. Eu estava procurando um novo projeto e esse roteiro lindo apareceu. Depois, o elenco nasceu justamente em Gramado, em 2017, quando eu estive aí com o Luciano Reck e o Diego Freitas [da Parakino Filmes] e vimos o trabalho maravilhoso do Nando Cunha, que ganhou o kikito de melhor ator pelo curta Telentrega [dirigido por Roberto Burd]. Naquele momento já estávamos com o edital do Fundo Setorial para fazer O Novelo. O resto todo se desenrolou e o elenco nasceu do Nando Cunha”. E completou: “Um elenco desse porte não dá muito trabalho. Foi o elenco mais dedicado que uma diretora poderia querer. Todos estavam muito entregues. Foi muito bonito e gratificante”.
A roteirista Nanna de Castro falou sobre seu processo de criação: “O filme nasceu como uma peça de teatro encomendada por cinco atores que queriam falar do modo como a mídia estereotipa os homens; eles queriam trazer um homem mais humano. Passei um bom tempo fazendo entrevistas e ouvindo homens, de várias classes sociais, sobre suas dores e dramas com a masculinidade. Por isso tem tanta densidade. Eu escrevo teatro, mas sou uma dramaturga que quer escrever cinema. Minhas peças são muito fáceis de transportar. Então, não foi um drama adaptar para o cinema”.
História universal e emocionante.
Sidney Santiago Kuanza, que interpreta o caçula Cacau, também falou sobre o roteiro: “Essa peça, que foi criada há dez anos, nos deu muito amor. O teatro não nos abandonou nesse processo. Todo mundo queria fazer muito esse filme. Tem uma coisa do texto da Nanna que cabe na nossa boca. Eu achei que a minha geração não teria a oportunidade de fazer um filme como esse, com esse grau de humanidade. Foi um prazer. Eu acho que nós não temos um filme brasileiro que apresente três gerações de artistas negros podendo construir personagens e com uma história universal e familiar sendo vivida por atores negros. Uma oportunidade que, para nós, é ainda muito rara. Foi bom também ver atores tão distintos, vindos de lugares diferentes, mas que tinham muita química. Foi um set de muito amor e respeito”.
Nando Cunha, que interpreta Mauro, o primogênito da família, falou sobre a importância do longa: “Eu estou muito feliz com esse filme. Quando eu passei em Gramado [em 2017] com o curta Telentrega, eu já cheguei com essa ideia de mudar esse olhar para mim como ator. As pessoas só me viam fazendo comédia. Queria mudar esse olhar e que acreditassem mais no meu trabalho. Entrar no festival foi a melhor experiência que eu tive na minha vida. Precisávamos de mais oportunidades. A única diferença entre um ator branco e um ator negro é a oportunidade. E fiquei muito feliz que a Cláudia ficou tocada com a minha fala. Porque se eu não tivesse falado, talvez não estaria nesse filme, pois somos invisíveis”. Clique aqui e assista aos melhores momentos da premiação do 45º Festival de Cinema de Gramado com trechos do discurso de Nando Cunha.
E completou: “Além desse filme ter mostrado essa masculinidade negra de uma maneira muito sensível, nos mostrou também como seres humanos. Que bom que tudo o que eu falei se concretizou. O filme tá lindo e delicado. Ontem, minha mãe e meus irmãos assistiram e falaram que parecia a nossa história. Isso foi demais. É sobre isso. Estamos vivendo uma polarização louca onde as pessoas ficam em cima do muro e eu já estava me posicionando em 2017. Como é bom se posicionar. Não temos mais tempo para ficar em cima do muro. Foi muito importante fechar esse ciclo agora em Gramado com esse filme. Para mim, tudo isso tem um significado muito grande por ter provado que eu conseguiria fazer um filme com essa magnitude e com a essa força”.
Sidney Santiago Kuanza falou sobre a presença negra no audiovisual brasileiro: “Esse é um filme que a gente esperava há muito tempo. Estávamos órfãos desse filme na filmografia brasileira. Tem uma pequena cartografia que eu fiz com O Assalto ao Trem Pagador [de Roberto Farias], As Filhas do Vento [de Joel Zito Araújo e premiado com quatro kikitos em 2004], Café com Canela [de Ary Rosa e Glenda Nicácio] e O Novelo. Eu acho que são filmes que trazem a pluralidade da presença negra no nosso país; em contraponto a tudo que foi criado de estereótipo, todas as cristalizações e as narrativas viciadas e viciantes que foram colocadas na população negra no audiovisual”.
Debate virtual em Gramado com elenco e equipe.
Nando Cunha também comentou: “É uma pena que estamos comemorando um ineditismo, em 2021, de um protagonismo negro no cinema. Tomara que venham mais Novelos e mais festivais, para que tenhamos mais oportunidades e chances de ressignificar esse olhar e as narrativas sobre nós. Todo ano deveria ter um filme desse. Todo ano deveria ter uma oportunidade dessa para qualquer um. Não deveríamos estar discutindo isso agora. O cinema e a televisão foram muito culpados por essas narrativas de marginalização e desse olhar de estereótipo”.
E ressaltou: “Estou em um trabalho agora onde eu faço um nobre do Egito que tem uma casa enorme. Fiquei lembrando que em todos os meus trabalhos anteriores, os meus cenários eram barracos ou uma casa pobre. Agora estou em uma emissora que nem debate isso e me coloca em um lugar de nobre, com um mega cenário. Isso é significativo e muda esse olhar. É isso que o cinema, o teatro e a televisão precisam fazer. Não podemos mais estar marginalizados. Não somos assim”. A diretora Cláudia completou: “O roteiro não fala nada da cor da pele. O que prova, como disse o Nando, que falar desse assunto no século 21 já não é o que se esperava”.
Para finalizar o debate, Sidney comentou: “O roteiro traz coisas muito interessantes para pensar não só na figura do negro, mas na figura do Brasil. Vivemos em um país muito violento, onde muitas vezes nossas narrativas intensificam esse grau de violência; não à toa temos o presidente que temos. Esse filme deixa um legado de pensar em construir histórias brasileiras. A história da população negra no Brasil é permeada pela violência: do Estado, de séculos de escravidão, de um Estado que não pensou possibilidade e promoção para uma população conseguir sua autonomia e emancipação. Mas, a história do Brasil também é feita de processos de lutas e conquistas da população negra. Quando a gente se propõe a construir essas narrativas, todos nós ganhamos e a população negra passa a se ver em outros lugares. A nossa luta ainda hoje no Brasil é, sobretudo, promover nossa humanidade. A história se faz por esses laços positivos”.
As exibições dos longas-metragens brasileiros acontecem entre 13 e 19 de agosto, a partir das 21h30, na grade linear do Canal Brasil, para toda a base de assinantes, e nos serviços de streaming Canais Globo e Globoplay + Canais ao Vivo somente durante o horário da exibição na TV.
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Fotos: Divulgação/O2 Play e Edison Vara/Ag. Pressphoto.