A Máquina Infernal: Francis Vogner dos Reis fala sobre o curta-metragem exibido no 10º Olhar de Cinema

por: Cinevitor
Carolina Castanho em cena do curta.

Depois de passar pelo Festival de Locarno, na Suíça, e no FICValdivia, no Chile, o curta-metragem A Máquina Infernal, dirigido por Francis Vogner dos Reis, foi exibido pela primeira vez no Brasil na décima edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.

O filme, que faz parte da Mostra Competitiva, é uma fábula sobre o apocalipse da classe operária. Em uma velha fábrica em processo de falência, os corpos humanos quebram como se fossem máquinas, as máquinas gritam como se fossem corpos. O contraste entre a potência do inumano (as máquinas) e a fragilidade do humano (os trabalhadores). As fantasmagorias do trabalho moderno no mundo contemporâneo. Um filme de horror e amor.

Produzido por Maria Tereza Urias e Renan Rovida, o curta conta com Carolina Castanho, Glauber Amaral, Carlos Escher, Talita Araujo, Renan Rovida, Carlos Francisco, Maria Leite, Martha Guijarro, Carlota Joaquina, Luis Chierotto e Allan Petterson dos Reis no elenco.

Para falar mais sobre A Máquina Infernal, entrevistamos o diretor Francis Vogner dos Reis por e-mail. Confira:

Depois de passar pelo Festival de Locarno, na mostra Pardi di domani, A Máquina Infernal chega ao Olhar de Cinema. Para você, qual a importância de ter sido selecionado para um festival brasileiro tão prestigiado (ainda que on-line, porém com uma abrangência maior de espectadores)? Como tem sido a repercussão do público?

Foi ótimo passar o filme em Locarno, mas meu desejo era ver o filme exibido no Brasil. Talvez fale mais diretamente à inteligência e sensibilidade do público brasileiro que pode entender com mais presteza o que o filme coloca em jogo. Aqui, por exemplo, não tenho que justificar porque escolhi o horror, como também não preciso dizer para o público e para a imprensa sobre o que está acontecendo no Brasil. Os programadores de Locarno foram muito sensíveis ao escolher A Máquina Infernal para a Pardi di domani [mostra competitiva internacional de curtas] e me falaram coisas importantes sobre como o filme bateu neles. Mas no Brasil a recepção do público tem sido interessante. Acompanhei algumas coisas pelo Letterboxd, li críticas e acho que quem assistiu e decidiu falar sobre acatou as proposições que o filme faz. Fico feliz.

A Máquina Infernal retrata uma realidade metalúrgica contemporânea e uma fragmentação da classe operária. Como surgiu a ideia desse roteiro, a motivação para contar essa história em um cinema de gênero (nesse caso, o horror)?

A Máquina retrata sim uma realidade do imaginário e dos impasses derradeiros de uma parte significativa da atual classe trabalhadora da indústria. O desejo em trabalhar no registro do gênero foi meio óbvia pra mim que sempre vi o horror como uma possibilidade poética interessante para lidar com aquelas coisas para as quais ainda não temos uma elaboração. É nessa dobra – entre o que morre e o novo (que nem sempre é positivo) que surgem os monstros, né? E tem uma questão relacionada ao estranhamento da fábrica. O espaço da fábrica, os jogos de força, a violência e o irracional estão ali em sua máxima potência. Gera fantasmagorias.

Três coisas me influenciaram a pensar essa história: a primeira, as ruínas. Cresci vendo as ruínas no ABC. Elas sempre existiram, tanto em período de maior pujança quanto em ciclos de decadência. A sensação que eu tinha, quando pequeno, é que a ruína era como a velhice e a morte orgânicas. Em uma hora essas fábricas vão envelhecer e morrer, vai sobrar o esqueleto. Era a visão que eu tinha. Ou seja: era ao mesmo tempo uma ruína do presente que remetia ao passado e também a projeção de uma ruína do futuro com raízes no presente. As ruínas são assustadoras: decadência, memória das coisas mortas, desaparecimento, fantasmas do passado atuando.

Em segundo lugar, as memórias da fábrica da minha mãe e do meu pai. O demoníaco e o delírio, em alguns de seus relatos, estavam presentes ali no chão de fábrica corriqueiramente. Por exemplo, a cena da personagem Luisa, interpretada por Martha Guijarro, que vai ao chão possuída. Aquilo é memória da minha mãe. Sem tirar e nem pôr. Minha mãe e três tias, numa fábrica de embalagens trabalhando em pé dez horas por dias, viam, às vezes, isso acontecer com uma colega. Segundo minha mãe, ela ‘era possuída’. E não foi uma ou outra vez. Foram várias. Não estou dizendo que ERA possessão. A possessão era uma leitura das pessoas. Uma leitura nada desprezível, pois nos diz muito. 

Em terceiro lugar, o livro A Aparição do Demônio na Fábrica, do sociólogo José de Souza Martins, me deu uma perspectiva crítica da fantasmagoria de fábrica, pois a pesquisa que deu origem ao livro investiga a realidade concreta e o imaginário do operariado do ABC nos anos 1950, a partir do caso de quatro operárias que desmaiaram em uma semana em uma fábrica de cerâmica em São Caetano e ao acordarem disseram ter visto o demônio as observando em um canto do galpão da linha de produção. Essas operárias tinham origem no universo rural e seu imaginário religioso. A questão que ele coloca é que nem a modernidade industrial apagou esse imaginário e nem esse imaginário se sobrepôs à racionalidade do trabalho moderno e industrial. Seria, não só isso mas toda a teia de relações e valores, o traço de uma modernidade anômala. Mas não queria fazer um filme de caráter mais diretamente sociológico, não saberia fazê-lo, queria um filme com uma imersão na fantasmagoria, mas que ao mesmo tempo apontasse vetores, através da fábula, de uma experiência histórica.

O filme reprisa na terça-feira, 12/10, na programação do Olhar de Cinema.

Quais foram suas referências (pessoais, filmes, memórias, textos, etc.)?

Com relação à influência de filmes acho que é evidente: filmes de horror como Terror nas Trevas [L’aldilà], do Lucio Fulci, O Príncipe das Sombras [Prince of Darkness], do John Carpenter, os filmes do David Cronenberg, Kiyoshi Kurosawa; mas também filmes que não são de terror, como os do Robert Bresson, Elio Petri, Leon Hirszman, Carlos Reichenbach. Não acho que tudo isso nos influenciou diretamente, mas são filmes e diretores que estudamos e nos inspiraram aqui e ali.

Mas minha influência para o filme ser o que é foi de companheiras e companheiros de viagem: atrizes, atores, profissionais técnicos e a própria dinâmica dos produtores, Maitê Urias e Renan Rovida (e também Carlos Escher), que vem de uma larga experiência com teatro e trouxeram com eles um olhar, uma perspectiva política, um modo de trabalho, atores e atrizes. O co-roteirista Cassio Oliveira, a dupla da fotografia (Bruno Risas e Alice Andrade Drummond) foram decisivos porque além da luz fizeram a cor, assim como a direção de arte (Marcelo X) que ajudou ativamente a construir o espaço, o tempo da montagem da Cristina Amaral, o som do Guile Martins… Enfim, todo mundo. Todas as pessoas foram chamadas como colaboradores. O filme é o que é, no que ele tem de melhor, por causa de toda equipe.

Ainda que o cinema brasileiro já tenha retratado trabalhadores de fábricas em algumas obras, seu curta traz, no gênero de horror, outras identificações com elementos mais fantasmagóricos que colaboram para o desenrolar da narrativa. O fantástico está presente no imaginário, mas também no físico. Como você trabalhou, por exemplo, questões como a escolha de locação e o desenho de som?

Encontrar a locação foi a coisa mais difícil de todo o filme, pois as fábricas, muitas delas em crise, não abriam as portas à uma equipe. Chegamos a conversar e fechar com uma fábrica de peças em Ribeirão Pires. Fizemos a direção de arte dialogando com as cores dessa fábrica e reescrevemos o roteiro para se adaptar ao espaço. Deram pra trás. Nos 45 do segundo tempo, encontramos a Legas, em Diadema. Nelson e Marcelo Miyazawa, os proprietários, assim como os trabalhadores da fábrica, foram muito generosos e prestativos. Além disso, o espaço da fábrica era fantástico e nos oferecia tudo o que precisávamos. Claro que mexemos no roteiro e na direção de arte para adaptar à nova locação. O espaço muito particular determinou como poderia ser filmado. Guile Martins fez o desenho de som, árduo e complexo, o que me deixou muito feliz. A ideia era uma fábrica que alternasse silêncios, sons industriais, sons estranhos com algum comedimento, mas o difícil foi construir o monstro sonoro. Algo entre o maquínico e o orgânico, entre a edificação concreta de um prédio e o abstrato. Não foi fácil, mas está ai.

A escolha da equipe é peça fundamental para colocar um projeto em prática. Em A Máquina Infernal, além de um elenco talentoso, você trabalha também com outros profissionais consagrados, como por exemplo, a montadora Cristina Amaral. Como foi o entrosamento com a equipe e a preparação do elenco (que aliás, conta com seus pais como figurantes)?

Era um sonho trabalhar com Cristina Amaral, que acho uma das maiores artistas do cinema brasileiro. Ela imprimiu o tempo do filme. Quando eu trouxe as ideias das fusões, foi justamente porque sei que esse trabalho dela com fusões (em Carlos Reichenbach e Andrea Tonacci, principalmente) era uma coisa fina e sutil, difícil de conseguir se não for a partir de um ritmo singular. Ela, como a gente vê, fez um trabalho impressionante. Na pós-produção, todos as dicas dela foram acatadas. Ela tem olho e ouvido com uma minúcia criativa que nunca vi.

Com relação aos atores e atrizes, Renan (que também é ator no filme) e Maitê me trouxeram um modo de trabalhar em conjunto que vem da experiência deles do coletivo Tela Suja e do teatro. Me trouxeram seus parceiros no Tela Suja (Talita Oliveira), Companhia Antropofágica (Martha Guijarro) e atrizes e atores que passaram pela Companhia do Latão (Carlota Joaquina, Carlos Escher, o próprio Renan) e Carlos Francisco (que foi do Folias e fez vários filmes importantes no cinema brasileiro recente), que me ajudaram a reelaborar os personagens, os gestos e a fala política. A cena da assembleia tem intervenções diretas em falas que não estavam no roteiro, por exemplo, de Renan, Carlão e Carlota.

Glauber Amaral e Carol Castanho eu os vi no Teatro Oficina e queria ver, na contramão, esses corpos – de abertura dionisíaca – atuando no ambiente rígido de uma fábrica. O conflito seria produtivo. Glauber tem esse corpo grande e certa fragilidade que faz sentido ao personagem, Carol Castanho tem belos olhos enormes que nos traz o extracampo. Eu vejo que essas diferenças todas estabeleceram um jogo em conjunto e isso foi muito bom. Meus pais e irmãos estão no filme; os queria no filme, além do fato de terem intimidade ali com aquele universo.

O diretor durante a 74ª edição do Festival de Locarno.

Como foi a experiência de passar o filme em Locarno e a repercussão de um público internacional? Além disso, como você avalia a participação e a importância do nosso cinema nesses eventos fora do país?

Foi muito legal passar em Locarno, ocupar um espaço ali. Interessante ver que parte do público internacional aderiu à proposta do filme, parte teve dificuldade, o que é normal. Como disse, eles e elas tem muitas perguntas sobre o Brasil, pra eles uma terra muito distante e um pouco desconhecida.

Sobre os filmes fora do país, acho que os festivais internacionais precisam ser ocupados com imagens do Brasil, há nisso uma importância política, simbólica e, em poucos casos, econômica. Mas acho isso pouco. Acho que precisamos aprender a fazer circular os filmes no Brasil, inclusive, para além dos festivais. Ficarmos espremidos entre festivais e circuito exibidor não dá pé.

Seu repertório cinematográfico passa por diversas áreas (roteirista, curador, crítico). Em seu primeiro curta como diretor, como você acredita que A Máquina Infernal possa dialogar com o público e com o Brasil atual?

Eu gostaria muito que dialogasse com os públicos em geral, incluindo aquelas para além do nicho dos festivais. Sempre me preocupo muito não só como em continuar fazendo filmes, mas com qual o caminho para que possam existir efetivamente. É uma questão política, mais do que de mercado no sentido diminuto do termo. Os festivais são fundamentais, mas se queremos fazer a disputa do imaginário no país, precisamos ir além.

Acho curioso que parte do debate político sobre protagonismo no cinema brasileiro passe às vezes, restritamente, pelos festivais e pela indústria mainstream. Entendo, porque é o que há e é onde está o trabalho, mas é preciso criar outros caminhos, outras possibilidades. Se a disputa que estamos construindo é só a de ocupar os espaços que já existem ao modo tradicional, ainda que com discurso radical de nossa parte, nossa ambição tem um teto baixo, pois o mercado – tal como vigora com suas regras, hegemonias e limites claros – trata de manter as estruturas e a concentração econômica. 

*A Máquina Infernal reprisa na terça-feira, 12/10, na programação do Olhar de Cinema.

Entrevista e edição: Vitor Búrigo
Fotos: Divulgação/Desalambrar Filmes e Massimo Pedrazzini (Locarno)

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