Com atuação nas áreas de roteiro, assistente de direção, consultoria de projetos e preparação de elenco, Nina Kopko estreia na direção com o curta-metragem Chão de Fábrica, exibido, pela primeira vez, na mostra competitiva da décima edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
Com roteiro escrito em colaboração com Tainá Muhringer e produzido por Letícia Friedrich, o filme começa em 1979 quando as máquinas desligam para o horário do almoço dentro de uma metalúrgica de São Bernardo do Campo. Quatro operárias comem dentro do banheiro feminino. Entre risos e conflitos, cada uma guarda um seu segredo. O elenco conta com Alice Marcone, Helena Albergaria, Carol Duarte e Joana Castro.
Nina, que foi diretora assistente dos filmes A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, e O Silêncio do Céu, de Marco Dutra, é tutora do Laboratório de Roteiros da Escola Porto Iracema das Artes desde 2018. Além disso, está em pré-produção de seu primeiro longa, Ranço de Amor, vencedor do edital Start Money da Spcine e produzido pela RT Features.
Para falar mais sobre Chão de Fábrica, seu primeiro curta-metragem, entrevistamos a diretora por e-mail. Confira:
Chão de Fábrica retrata quatro operárias de uma metalúrgica de São Bernardo do Campo. Como surgiu a ideia desse roteiro e quais foram suas referências?
A ideia começou quando vi a peça O Pão e a Pedra, da Companhia do Latão. O curta é inspirado numa cena curtinha da peça. Lembrei dos filmes que tinha visto na faculdade, sobre a greve do ABC, e como a presença de mulheres era ínfima. Me perguntei onde elas estavam na greve, se quase 30% da força operária nesse momento no ABC era de mulheres. Conversei com a atriz Helena Albergaria e com a pesquisadora Maria Lívia, e descobri que muitas mulheres operárias desse momento eram obrigadas a almoçar dentro do banheiro feminino. Então, por curiosidade, vi o filme Trabalhadoras Metalúrgicas, da Olga Futemma, e entendi que as mulheres estiveram na greve em menor número por conta da dificuldade da jornada dupla de trabalho (fábrica e casa/família) – a jornada tripla, incluindo aí as atividades sindicais, eram poucas que podiam fazer. Mas elas estiverem lá na grande greve, ainda que a gente veja pouco. E eu quis falar sobre isso.
O filme da Futemma se tornou uma grande referência, não só de pesquisa mas de inspiração cinematográfica. Depois disso foi um longo percurso de pesquisas e escritas de roteiro ao lado da Tainá Muhringer. São muitas as referências que eu visitei durante esse processo. Acredito muito nos filmes como uma espécie de constelação, onde você conversa, responde e resgata muitas obras. Vou citar aqui as mais importantes pra mim, por diferentes razões: A Dupla Jornada, de Helena Solberg; Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman; Wanda, de Barbara Loden; o cinema todo do Carlos Reichenbach; um episódio daquela série A Família Dinossauros que me marcou ainda na infância e que fala de uma dinossaura operária assediada e que sofre para conquistar seus direitos; os textos da Simone Weil e da Silvia Federici; e a própria obra da Companhia do Latão, que foi um lugar que estudei muito em várias oficinas com o Sergio Carvalho e a Helena Albergaria.
A diretora nos bastidores das filmagens.
Com uma carreira consolidada no cinema, em diversas áreas, Chão de Fábrica é seu primeiro curta-metragem como diretora. Para você, qual a importância de ter sido selecionada para um festival tão prestigiado como o Olhar de Cinema? Como tem sido a repercussão do público?
Acho que toda a minha trajetória no cinema é uma espécie de grande percurso para me tornar diretora. Comecei como montadora, depois trabalhei com desenvolvimento de projetos, passei para assistência de direção e hoje sou roteirista e preparadora de elenco, além de ter feito duas direções assistente, que é uma função que você contribui e cria bastante ao lado da direção. Acho que todas essas experiências me deram uma noção do todo do que é realizar um filme. E, no fim, é tudo sobre criar histórias. Acho que a melhor maneira de me autodefinir é como contadora de histórias.
Mas eu demorei para entender que realmente queria dirigir também, para ter a coragem de investir nesse caminho até chegar no Chão de Fábrica. Mas eu não queria realizar um filme para provar para mim mesma que era capaz. Isso não fazia sentido. Eu queria contar uma história sobre um tema que me perturbasse, queria dividir algo com o público que eu achasse muito importante, que conversasse com as inquietações do presente. E foi assim que Chão de Fábrica surgiu, quando meses depois de ver a peça do Latão eu ainda não conseguia parar de pensar nessas mulheres e no quanto isso falava das mulheres trabalhadoras de hoje, da história delas e quem são (somos) hoje.
Estrear nesse festival de repercussão internacional é algo lindo, me sinto muito sortuda com essa estreia. A repercussão está sendo ótima, ontem foi a primeira sessão desse filme no mundo e recebi muito carinho e retornos emocionados das pessoas que assistiram. Estou numa alegria gigante hoje. Sinto que o que eu mais queria com esse curta começou a acontecer: as pessoas se conectaram com essas quatro personagens de forma muito íntima.
As atrizes Joana Castro e Carol Duarte em cena.
Sobre o elenco, como surgiu a ideia de trabalhar com essas atrizes? Como foi o processo de preparação e o entrosamento no set?
Complementando a pergunta anterior, eu também queria aproveitar a condução da direção de um filme para experimentar algo que venho pesquisando há um tempo: escrever o roteiro na sala de ensaio, junto do processo com as atrizes. Algo semelhante com que algumas companhias fazem no teatro e alguns raros diretores de cinema fizeram, como o John Cassavetes, Mike Leigh, Rainer Werner Fassbinder. E assim chegamos na sala de ensaio dois meses antes de filmar com uma V3 do roteiro, onde a estrutura estava bem sólida, mas havia lacunas e espaço de construção das personagens, dos diálogos, das ações e desenhos de cenas. Durante duas semanas investigamos e experimentamos muitas coisas juntas e no fim do processo eu escrevi a versão final do roteiro que é essa filmada. A minha experiência de roteirista e de preparadora de elenco trabalhando juntas, sabe? Foi dos processos mais bonitos em criação que já vivi.
E para fazer esse filme eu precisava de atrizes excelentes e que também fossem minhas amigas, porque o filme não tem nenhum financiamento, não existia cachê. Então, desde o início eu sabia que seriam elas quatro as atrizes do filme, e eu e a Tainá fizemos o primeiro desenho das personagens pensando muito nelas. Na verdade, só a Joana Castro eu não conhecia muito bem pessoalmente, mas era completamente apaixonada pela interpretação dela. E por sorte ela também topou, mesmo antes de ficarmos amigas. O entrosamento foi total. Inclusive porque tivemos esse longo período na sala de ensaio. Eu acredito que preparar um elenco é, em grande medida, criar o ambiente necessário para que os atores criem intimidades e se construam as relações.
Como você acredita que Chão de Fábrica possa dialogar com o público e com o Brasil atual?
O filme fala de muitas coisas sobre o presente, apesar de ser um filme sobre o passado. Ele chega até o presente, até os dias de hoje, tem alguns saltos temporais. Eu falo do passado com pés totalmente cravados no presente. Eu chego com essas personagens nos dias de hoje. Acho que só por esses apontamentos de futuro já fica um pouco evidente sobre o que eu estou querendo falar; sobre essa trajetória da mulher trabalhadora no Brasil nos últimos quarenta anos. Estamos vivendo um momento de perdas de direito; os poucos direitos conquistados pelos trabalhadores nesses últimos quarenta anos estão sendo soterrados, jogados fora e estrangulados. Acho que o filme fala muito disso também. Eu gostaria de conversar sobre isso, sobre a vida dos trabalhadores em geral, não só os de fábrica. Dessa nova grande escala de serviço terceirizado onde você não tem um vínculo empregatício. Estamos falando realmente de um abandono e de um desamparo muito grande para quem trabalha. Eu acho que essa é uma das facetas que o filme pretende conversar com o momento atual.
O que me interessa muito é que as pessoas criem uma relação com essas personagens, com essas quatro mulheres. Claro que estou falando das mulheres trabalhadoras como um todo, das mulheres metalúrgicas, das trabalhadoras em geral, mas, elas não representam todas. Elas são quatro e são específicas, contraditórias e únicas. Meu desejo é sempre que, da maneira como eu construo, como eu escrevo historias, do que eu espero atingir no publico, é que se crie essa relação íntima e provocativa também com essas quatro personagens.
*Chão de Fábrica reprisa na quinta-feira, 14/10, na programação do Olhar de Cinema.
Entrevista e edição: Vitor Búrigo
Fotos: Carol Aó e Dayse Barreto