O Clube das Mulheres de Negócios, de Anna Muylaert, abre a mostra competitiva do 52º Festival de Cinema de Gramado

por: Cinevitor
A equipe do filme no tapete vermelho de Gramado

A mostra competitiva de longas-metragens brasileiros da 52ª edição do Festival de Cinema de Gramado começou neste sábado, 10/08, com a exibição de O Clube das Mulheres de Negócios, novo longa-metragem da consagrada cineasta Anna Muylaert. O filme traz inversão de papéis de gênero em uma narrativa bem-humorada que conta com um grande elenco.

A gênese do projeto se deu no final de 2015, na efervescência de movimentos feministas, quando Anna Muylaert teve a ideia de realizar um filme de inversão de papéis de gênero, que mostrasse como as mulheres são desprivilegiadas em muitas situações. Nesses nove anos desde o início da criação do filme, muitas movimentações sociopolíticas aconteceram, inclusive o #MeToo, fazendo com que Anna atualizasse o roteiro, em parceria com a Glaz Entretenimento, para incorporar também as mudanças sociais e o recente momento de extremismo político vivido pela sociedade brasileira.

Com tom de sátira e bom humor, mas sem deixar de lado as críticas sociais, O Clube das Mulheres de Negócios traz situações absurdas que fazem o espectador se questionar sobre as estruturas de poder vigentes, problematizando o machismo e classismo enraizados na sociedade. Anna Muylaert, que já fez o público rir e chorar com Que Horas Ela Volta? e Mãe Só Há Uma, agora traz diversão, reflexão e catarse para os espectadores em uma obra que dialoga diretamente com o momento cultural vivido no Brasil e no mundo.

A inversão dos papéis de gênero, com as mulheres exercendo autoridade enquanto os homens são moldados para uma postura de submissão, é apenas o começo de uma série de imagens e reflexões propostas ao longo do filme. À medida que a história vai escalando, surgem as onças que conectam todas as outras instâncias da narrativa, simbolizando o poder que transcende às rígidas divisões estabelecidas pela sociedade. 

O longa conta com um grande elenco composto por nomes conhecidos do teatro, cinema e televisão brasileiros, sobretudo no universo da comédia. Entre eles estão os protagonistas Luis Miranda dando vida ao renomado fotógrafo homem Jongo e Rafael Vitti como seu inexperiente e ingênuo colega, Candinho. Eles serão as presas das mulheres de negócios: Cristina Pereira interpretando Cesárea, presidente do Clube e Louise Cardoso como sua fiel escudeira, Brasília. Irene Ravache interpreta a quatrocentona Norma com seu marido submisso, vivido por André Abujamra, 20 anos mais novo.

Também fazem parte do Clube: Katiuscia Canoro vivendo Zarife, uma mulher destemperada que quer ser presidente do Brasil e suas obedientes sobrinhas Maria Bopp e Veronica Debom. Grace Gianoukas dá vida à vaqueira predadora Yolanda, que traz a tiracolo seu marido troféu, Jadeson, interpretado por Tales Ordakji, 40 anos mais jovem. Shirley Cruz interpreta a milionária líder evangélica Bispa Patrícia, Polly Marinho é a cantora de funk hypada Kika e Helena Albergaria faz a misteriosa advogada Fay Smith. Aos 80 anos de idade, Ítala Nandi volta às telas como a conquistadora Donatella.

A diretora Anna Muylaert no tapete vermelho

Na apresentação do filme no Palácio dos Festivais, Muylaert subiu ao palco com diversas integrantes do elenco: “Nós estamos felizes em participar desse festival depois de toda a tragédia climática que aconteceu no Rio Grande do Sul. Todos nós, do elenco e equipe, estamos solidários a todos”.

No seu discurso, Anna aproveitou para relembrar sua história com Gramado: “A primeira vez que eu vim ao festival foi na década de 1980 como crítica do Estadão. Foi o ano que passou o filme Anjos da Noite, do Wilson Barros, que era meu professor de direção. E foi o ano que ganhou Anjos do Arrabalde, de Carlos Reichenbach, que estava aparecendo para o público. A segunda vez que eu vim foi nos anos 1990 como curta-metragista na era Collor quando não tinha quase filme brasileiro. Em 2002, no início da retomada, eu participei com Durval Discos, que mudou a minha vida e por isso tenho um carinho por esse festival. Foi o ano que foi lançado Amarelo Manga, Cidade de Deus e Madame Satã. Foi o início fervoroso da retomada, um momento muito especial que dava alegria de fazer parte do clube do cinema brasileiro. No ano seguinte eu fui júri”.

E seguiu: “Em 2015 eu abri o festival com Que Horas Ela Volta? em um momento que o cinema brasileiro estava bombando pelo mundo. Agora, em 2024, voltando com O Clube das Mulheres de Negócios que, não por acaso, é o meu filme que mais dialoga com Durval Discos”.

Anna também trouxe uma reflexão importante sobre o atual momento do cinema: “Acho que estamos em um momento difícil para o cinema devido ao fato que as pessoas estão vendo narrativas curtas nos celulares e em suas telas pequenas. E também porque houve uma invasão das multinacionais americanas do audiovisual que estão fazendo produções a partir de outros parâmetros do que o cinema faz. Eles trabalham muito a partir de números e estão mudando a forma de ver filmes e a forma de produzir filmes. Eu tenho a impressão que eles estão diminuindo a importância da autoria cinematográfica. Sendo mais importante a empresa e a multinacional do que o diretor, o autor. Essa importância está sendo rebaixada”.

A cineasta seguiu seu discurso: “Neste momento, queria dizer o quanto esse festival é mais importante do que nunca. Porque aqui temos sete autores, dos quais quatro são mulheres, o que eu acho algo muito bom. Queria celebrar o festival e também a Ancine. Sem a Ancine não haveria cinema brasileiro dos últimos anos. E essa ideia de autor eu acho fundamental porque qualquer obra de arte, seja cinema, teatro ou literatura, demanda humanidade, sangue, cuspe. Como diria Claudio Assis em Amarelo Manga: estômago e sexo. E eu acho que essa baixada de bola da autoria faz com que as coisas fiquem menos vivas e menos importantes. Eu acho que o cinema brasileiro, como disse Paulo Emílio Sales Gomes: o cinema brasileiro, independente da qualidade, sempre será mais interessante para nós do que qualquer filme estrangeiro. E eu acredito nisso. Eu acredito no cinema brasileiro e na autoria! Que o cinema brasileiro tenha vida longa e que tenha sangue!”.

Elenco e equipe no palco do Palácio dos Festivais

Ao final do discurso, Muylaert falou sobre o longa em competição: “Esse é um filme muito provocativo e tem múltiplas formas de ser visto e lido. Mas eu posso dizer uma coisa: todo mundo que está aqui fez esse filme com sangue, muito amor e de mãos dadas. Recebam nosso amor!”.

No dia seguinte à exibição, a diretora e o elenco participaram de um debate na Sociedade Recreio Gramadense, que foi mediado pelo jornalista gaúcho Roger Lerina. Entre diversas questões levantadas entre o público presente e a equipe do filme, a coletiva foi marcada por um momento emocionante com o forte depoimento da atriz Cristina Pereira, que revelou, pela primeira vez, publicamente, que foi estuprada aos 12 anos: “Cheguei no colégio com o uniforme aberto e ninguém se preocupou. Só queriam saber porque eu estava chegando atrasada”.

A revelação aconteceu quando debatiam uma das cenas do filme em que o personagem Candinho, interpretado por Rafael Vitti, sofre um assédio: “Quando o Candinho chora, sou eu que choro e são muitas meninas de 12 anos como aquela que estava a caminho do colégio e mataram aquela menina. É a primeira vez que falo publicamente sobre isso. Aconteceu comigo, mas está acontecendo com muitas meninas. Eu estava entrando na puberdade, nem tinha ficado menstruada. Eu não sabia nada sobre sexo, não sabia o que aquele homem tinha feito comigo, uma coisa horrível. Na minha época, não tinha educação sexual nas escolas”. Depois da fala, Cristina foi amparada pelas colegas de elenco que também estavam muito emocionadas e a abraçaram com muito carinho.

Além disso, outras questões também foram abordadas no início da coletiva. A atriz Maria Bopp comentou o entrosamento do elenco: “Esse filme tem muito do coletivo. Eu acho que é proposital um elenco tão grande. Nós somos um organismo. Estamos vivendo uma era de individualidade e individualismo e o interessante é que somos um grupo, vários tentáculos de um monstro. O coletivo faz sentido. Não acho que teria que ter um espaço individual de brilho para cada atriz, apesar de que todas são brilhantes. Brilhamos juntas”.

Katiuscia Canoro também debateu: “Eu sou uma atriz comediante aos olhos de vocês porque acho que todo mundo me conhece de uma comédia muito popular, como Zorra Total e Vai que Cola. O máximo que eu fiz da TV Globo foi A Grande Família. Todo mundo espera de mim uma comédia muito rasgada. Como palhaça, já que sou formada em palhaçaria, entende-se que nós somos o fracasso. Como fracasso, entrar num lugar desses, sendo o palhaço a única pessoa que pode dar um tapa na cara do rei, falar de coisas tão importantes e colocar várias críticas é um privilégio”.

Além da exibição de O Clube das Mulheres de Negócios, a noite de sábado contou também com a homenagem especial a Matheus Nachtergaele, que recebeu o Troféu Oscarito; e a exibição do primeiro episódio da série Cidade de Deus: A Luta Não Para, de Aly Muritiba

*O CINEVITOR está em Gramado e você acompanha a cobertura do evento por aqui, pelo canal do YouTube e pelas redes sociais: Twitter, Facebook e Instagram.

Fotos: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto.

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